Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

O Clã do Comboio – A Mulher que Sofria da Visícula

1 Comentário

A Mulher que Sofria da Visícula

Por vezes gosto de escrever os textos limitando-me à reprodução do diálogo. E a razão é simples. A sua riqueza dispensa descrições. Ainda assim, é melhor dizer-vos como era esta senhora.
Uma saia de fazenda cinzenta abaixo do joelho, meias de lã grossa, o cabelo apanhado atrás com um tótó, um casaco castanho claro de fazenda grossa com botões em castanho escuro, óculos, um envelope grande com exames no colo e em cima dele uma mala preta enorme. E falava! Falava com as pessoas que estavam de frente para si como se as conhecesse e explicava-lhes coisas como se lhe tivessem perguntado. A determinada altura, alguém começou a responder-lhe mais para a senhora não parecer tão alucinada do que para saber coisas ou conversar com ela. O marido, pequenino, rosado e cheio, num fato cinzento onde mal cabia, ia sentado ao lado dela mas parecia não ter autorização para falar.
——– Vou ao médico, sabe. Estou muito doente. É a vesícula. Sofro muito da vesícula.
——– Leva exames…
——– Levo, são raios X.
——– À visícula…
——– Não, credo, não se fazem raios X à visícula. É ao torax. O médico diz que esta tosse é esquisita, mas não tenho nada nos pulmões. Tenho esta tosse desde miúda. Já a minha mãe a tinha. Foi de andar no campo. Mas eu sofro é da vesícula.
——– Já fez exames…
——– Já. Tantos! Olhe, ainda há duas semanas me picaram todinha. O médico diz que os ossos estão fracos. Falta de cálcio. Mas não pode ser. Eu sempre fui rija. Foi de ser criada no campo. Sabe, eu sofro muito é da vesícula.
——– Então e os exames?
——– Olhe, inda há pouco tempo fiz um taco. Parece que tenho qualquer coisa na cabeça. Mas não, eles sabem lá… sempre tive boa memória. As coisas que eu me lembro!
——– Mas já te vais esquecendo…
——– ‘Tá calado, homem, não serves p’ra nada. Já a minha mãe tinha boa memória. O meu problema é a vesícula.
——– Então, mas fez exames à visicula ou não?
——– Eu não! Nem preciso. Uma pessoa sente-se e sabe o que tem…
——– E o médico, o que diz da visícula?
——– Diz que não tenho nada, mas eles não percebem nada. Eles agora saem tão novinhos das universidades. Podem lá agora saber, não podem! Eu é que sei o que eu sofro com a vesícula. Trago aqui uma pontada há anos. Se ao menos algum médico me visse isto e me receitasse qualquer coisa… mas a gente às vezes vai ao médico e eles nem um comprimido p’rás dores receitam… não sabem nada.
Desconhecida's avatar

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

One thought on “O Clã do Comboio – A Mulher que Sofria da Visícula

  1. Desconhecida's avatar

    Sensacional !!!
    Vejamos, pelas narrativas da Senhora, bem provavelmente, o seu nome deveria ser “Maria das Dores” e consequentemente um diagnóstico bem provável seria: Hipocondria Crônica agravada por Mioma Agudo na Vesícula Cerebral.
    É muito comum se deparar com esse tipo de pacientes,principalmente nos mais diversos meios de transportes coletivos. No Brasil popularmente conhecidos como:”Finikitus Agudus nu Rabus”,pois não Têem parada a qualquer canto que se encontrem.(risos)

    Saudações

    Men@

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