Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – Perder o Comboio

Perder o Comboio.

Pois é. Acontece. É uma incrível sensação de impotência. E não falo de perder o comboio por meia hora. Falo-vos do seguinte.
Sexta-feira. Véspera de fim-de-semana. O trabalho complica-se um bocadinho. Nem penso no comboio. Quando acabo o que estou a fazer são 18:55h. Há um intercidades às 19:30h. Só falta ir da 24 de Julho até Santa Apolónia. Uma pessoa que tenha passe, como é o meu caso, paga só 4€ por um bilhete de intercidades. Vale a pena. A viagem demora menos. O autocarro chegou às 19:15h. Pensei que tinha perdido o comboio e tirei daí o sentido. Acontece que àquela hora não havia trânsito. Em várias paragens não havia ninguém a entrar nem a sair o que significou não parar. Chegámos ao Terreiro do Paço e são 19:25h. Telefono para casa a dizer que o perdi. Mas daí em diante o autocarro faz a marcha contínua quase sem parar. Só uma paragem na Casa do Conto. São 19:29h. e chegámos a Santa Apolónia. Atravesso a rua a correr. Tenho de comprar o bilhete. Há duas pessoas na fila. A primeira sai. Olho o comboio. Está lá! A segunda tira o bilhete. Ouço um sinal sonoro forte. Tenho o homem da biheteira a perguntar-me:
——– Diga…?
Olho o comboio. Está a deslizar.
——– Não é nada, obrigado.


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O Clã do Comboio – A Mulher que Sofria da Visícula

A Mulher que Sofria da Visícula

Por vezes gosto de escrever os textos limitando-me à reprodução do diálogo. E a razão é simples. A sua riqueza dispensa descrições. Ainda assim, é melhor dizer-vos como era esta senhora.
Uma saia de fazenda cinzenta abaixo do joelho, meias de lã grossa, o cabelo apanhado atrás com um tótó, um casaco castanho claro de fazenda grossa com botões em castanho escuro, óculos, um envelope grande com exames no colo e em cima dele uma mala preta enorme. E falava! Falava com as pessoas que estavam de frente para si como se as conhecesse e explicava-lhes coisas como se lhe tivessem perguntado. A determinada altura, alguém começou a responder-lhe mais para a senhora não parecer tão alucinada do que para saber coisas ou conversar com ela. O marido, pequenino, rosado e cheio, num fato cinzento onde mal cabia, ia sentado ao lado dela mas parecia não ter autorização para falar.
——– Vou ao médico, sabe. Estou muito doente. É a vesícula. Sofro muito da vesícula.
——– Leva exames…
——– Levo, são raios X.
——– À visícula…
——– Não, credo, não se fazem raios X à visícula. É ao torax. O médico diz que esta tosse é esquisita, mas não tenho nada nos pulmões. Tenho esta tosse desde miúda. Já a minha mãe a tinha. Foi de andar no campo. Mas eu sofro é da vesícula.
——– Já fez exames…
——– Já. Tantos! Olhe, ainda há duas semanas me picaram todinha. O médico diz que os ossos estão fracos. Falta de cálcio. Mas não pode ser. Eu sempre fui rija. Foi de ser criada no campo. Sabe, eu sofro muito é da vesícula.
——– Então e os exames?
——– Olhe, inda há pouco tempo fiz um taco. Parece que tenho qualquer coisa na cabeça. Mas não, eles sabem lá… sempre tive boa memória. As coisas que eu me lembro!
——– Mas já te vais esquecendo…
——– ‘Tá calado, homem, não serves p’ra nada. Já a minha mãe tinha boa memória. O meu problema é a vesícula.
——– Então, mas fez exames à visicula ou não?
——– Eu não! Nem preciso. Uma pessoa sente-se e sabe o que tem…
——– E o médico, o que diz da visícula?
——– Diz que não tenho nada, mas eles não percebem nada. Eles agora saem tão novinhos das universidades. Podem lá agora saber, não podem! Eu é que sei o que eu sofro com a vesícula. Trago aqui uma pontada há anos. Se ao menos algum médico me visse isto e me receitasse qualquer coisa… mas a gente às vezes vai ao médico e eles nem um comprimido p’rás dores receitam… não sabem nada.