
O interregional das 7:18h não é só virtudes. Às vezes pára. Pára e fica parado e não avisa quando vai retomar sua ruidosa rota. Os motivos são vários. Para passar outro comboio, para não se cruzar com outro comboio, por razões técnicas de diversa ordem, porque se apaga todo, vai abaixo e depois é o cabo dos trabalhos para retomar a marcha, e ainda por um outro e interessante motivo: pára sem sabermos o motivo!
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Por vezes pára ali um pouco antes de Vila Franca de Xira e eu não me importo muito. Vê-se a lezíria, a bruma matinal sobre ela, o sol espelhando-se no rio langoroso e, ao fundo, uma antena. Nunca soube porque é que pára ali, nem tenho grande interesse em saber. Já tinha reparado na beleza da paisagem com a antena fina, esguia e altíssima emergindo da bruma. Era bonito. Mas era uma paisagem sem história.
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Hoje ganhou vida.
O homem tinha, seguramente, mais de 60 anos. Forte. Com a barriga redonda e grande a denunciar petiscos bem comidos e melhor regados. A pele estava marcada pelo tempo e pelo trabalho e ele apoiava-se na bengala preta com a ponta de borracha e o cabo em forma de tê. De frente para ele sentou-se a esposa. Era a ruralidade em pessoa num banco de comboio. Não falavam. Nunca falaram ao longo da viagem excepto quando parámos junto à paisagem da lezíria com bruma e antena ao fundo. Ele olhou pela janela e tomou-lhe conta da face certa expressão saudosa de Não era bom mas quem dera lá voltar e ficou olhando, tamborilando os dedos no cabo da bengala e quando terminou de saciar a vista, disse num tom tranquilo de quem constata um facto e tem a missão cumprida:
– Quando foi o 25 de Abril, passei uma noite ao relento de guarda àquela antena.
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As coisas que herdamos e nem damos conta! O sofrimento que foi preciso sofrer para aqui chegarmos. A vida que as coisas têm ou adquirem. Naquele momento, para além do respeito que me conquistou, aquele senhor de aspecto humilde e gasto alterou para sempre a minha percepção da lezíria com bruma e antena ao fundo um pouquinho antes de Vila Franca.
Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me!
Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras...
jpvideira
https://mailsparaaminhairma.wordpress.com
08/11/2012 às 07:05
Muito por seu comentário, quer dizer, por sua parada em esse meio de linha! jpv
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08/11/2012 às 04:59
A impressão que se tem dos comboios (trens) é que,são praticamente iguais ao redor do mundo, óbvio que,com suas particularidades, mas com um (facto)em comum: Todos, sem nenhuma excessão, em algum ponto param sem avisar e alí permanescem sem quaisquer justificativas aos usuários, porém,não fosse essa parada do interregional, não teríamos saboreado os ricos detalhes do episódio de um “ancião” e da (lezíria com bruma e antena ao fundo um pouquinho antes de Vila Franca). O Curioso desse comboio é ele ter conseguido atravessar o Atlântico e conquistado um'alma Brasileira,juntamente com seu “Clã”, proporcionando-lhe momentos de “êxtase” na leitura e conhecimentos geográficos de “terras” nunca dantes visitada.
Meu fraterno abraço
Men@
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18/11/2010 às 12:25
Agora o meu comboio pára todos os dias na estação Mailsparaaminhairmã. O meu fascínio pelos comboios andava um pouco adormecido e agora acordou. Obrigada por me acordares.
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