Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


3 comentários

O Clã do Comboio – Lezíria com Bruma e Antena ao Fundo

O interregional das 7:18h não é só virtudes. Às vezes pára. Pára e fica parado e não avisa quando vai retomar sua ruidosa rota. Os motivos são vários. Para passar outro comboio, para não se cruzar com outro comboio, por razões técnicas de diversa ordem, porque se apaga todo, vai abaixo e depois é o cabo dos trabalhos para retomar a marcha, e ainda por um outro e interessante motivo: pára sem sabermos o motivo!
Por vezes pára ali um pouco antes de Vila Franca de Xira e eu não me importo muito. Vê-se a lezíria, a bruma matinal sobre ela, o sol espelhando-se no rio langoroso e, ao fundo, uma antena. Nunca soube porque é que pára ali, nem tenho grande interesse em saber. Já tinha reparado na beleza da paisagem com a antena fina, esguia e altíssima emergindo da bruma. Era bonito. Mas era uma paisagem sem história.
Hoje ganhou vida.
O homem tinha, seguramente, mais de 60 anos. Forte. Com a barriga redonda e grande a denunciar petiscos bem comidos e melhor regados. A pele estava marcada pelo tempo e pelo trabalho e ele apoiava-se na bengala preta com a ponta de borracha e o cabo em forma de tê. De frente para ele sentou-se a esposa. Era a ruralidade em pessoa num banco de comboio. Não falavam. Nunca falaram ao longo da viagem excepto quando parámos junto à paisagem da lezíria com bruma e antena ao fundo. Ele olhou pela janela e tomou-lhe conta da face certa expressão saudosa de Não era bom mas quem dera lá voltar e ficou olhando, tamborilando os dedos no cabo da bengala e quando terminou de saciar a vista, disse num tom tranquilo de quem constata um facto e tem a missão cumprida:
– Quando foi o 25 de Abril, passei uma noite ao relento de guarda àquela antena.
As coisas que herdamos e nem damos conta! O sofrimento que foi preciso sofrer para aqui chegarmos. A vida que as coisas têm ou adquirem. Naquele momento, para além do respeito que me conquistou, aquele senhor de aspecto humilde e gasto alterou para sempre a minha percepção da lezíria com bruma e antena ao fundo um pouquinho antes de Vila Franca.


Deixe um comentário

Histórias do Autocarro 28 – O Maluco

O Maluco

É jovem. Tem menos de 40 anos. É baixo, atarracado e forte. A proeminência que traz à sua frente e a que chama barriga quando lhe dá uma palmada a atestar que está cheia indica bons tratos e más escolhas. Veste um fato-de-treino azul com duas riscas brancas e nada disto faz dele maluco. Nem a forma como se movimenta porque anda pelo autocarro 28, da Portela para o Restelo ou ao contrário, como qualquer um de nós, os outros todos. Não fui eu que o baptizei de maluco do autocarro. A primeira vez que o vi estava eu a meio da viatura e, ainda ele entrava à porta, quando um passageiro ao meu lado disse em tom de desabafo:
– Lá vem o maluco do autocarro!

O problema dele é quando abre a boca. Acontece que foi precisamente por ter aberto a boca que resolvi escrever este texto. O maluco do autocarro diz palavras impronunciáveis, interrompe as frases, volta ao início, salta para outras ideias sem acabar as primeiras, enfim, o caos discursivo total. A juntar a isto, mistura vocabulário regular com vocabulário erudito e rebuscado sem que as frases façam sentido e, para cúmulo, introduz obscenidades no discurso como se estivesse dizendo umas palavras como outras quaisquer. E até talvez sejam.


Acontece que, no meio de um discurso imperceptível, faz parágrafos de perfeito inglês e quando digo perfeito, refiro-me à correcção vocabular e à estrutura frásica. Do mesmo modo, consegue também umas frases em português ou mistas, português e inglês, onde, no meio do caos, dos palavrões, da ausência de significados coerentes, produz um parágrafo correcto, uma ideia acertada. Ora, é uma dessas que aqui me traz hoje. É que não foi só um parágrafo acertado. Foi uma síntese de um complexo problema educacional que vivemos na sociedade moderna. O maluco do autocarro condensou num só parágrafo o que teses inteiras na área das ciências da educação ainda não conseguiram discernir.

Ia no 28 um grupo de jovens entre os 15 e os 17 anos. Alguns beijavam-se afanosamente querendo gastar os beijos todos que vinham com o bilhete do autocarro, outros diziam parvoíces propositadamente audíveis em toda a viatura e, no conjunto, faziam aquele alarido próprio da idade da acne. O maluco do autocarro contemplou-os, tirou-lhes as medidas, fez-lhes a raiz quadrada e, depois de uma série de frases palavrosas e imperceptíveis, disse:
– Sabem qual é o problema da juventude? O problema deles é que só querem computers mas depois não sabem fritar um ovo! Teoria? A teoria tenho-a eu toda, home, o que é preciso é a prática, é quem saiba fazer. ‘Tá tudo f…


E pronto. Engavetei. Levei para casa e se um dia vier a fazer uma tese de doutoramento em Ciências da Educação, fica aqui prometido que arranjo maneira de citar o maluco do autocarro. Excepto a parte do f…, claro!

jpv


2 comentários

Perguntas

Perguntas

Para as perguntas que me fizeste
Encontras a resposta em ti
E é por isso que não percebo
Porque mas fizeste a mim.

jpv