Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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De Negro Vestida – XIV

 

Rotinas – XIV

Seja por preguiça na investigação, por comodismo na atitude, por semelhança nos rituais ou por coincidência cronológica, não raro atribuímos os mesmos nomes a fenómenos aparentemente semelhantes que são, quando observados com rigor e pormenor, tão díspares que mereciam nomenclatura diferente. Passa-se isto com o que está prestes a acontecer em casa de Maria de Lurdes. Hoje é sábado. Pais e filhos estão ainda em suas camas deitados e aconchegados e parecem indiferentes ao facto de a manhã ser já entrada há algum tempo. Daqui a pouco, Maria de Lurdes levantar-se-á para preparar-lhes o pequeno-almoço. E é este o nome que se dá à refeição que vai seguir-se por presumir-se idêntica ou ser a mesma que acontece ao longo da semana quando, na verdade, poucas coisas haverá tão dissemelhantes entre si. Durante a semana, a família, à excepção já aqui relatada da mãe, é acordada violentamente por despertadores e chamamentos a que se seguem corridas e competições pelas casas-de-banho. Hoje, acordam naturalmente e vão-se arrastando indolentes e ensonados para a cozinha. De semana, vestem-se e aprumam-se para saírem às suas vidas na rua social que os espera. Hoje, aparecem em pijamas e chinelos, os filhos, e enfiados em roupões por cima das roupas de dormir, os pais. De semana, fazem gestos rápidos e precipitados como se estivessem sempre irreversivelmente atrasados e tudo termina no burburinho de prédio abaixo a desembocar no carro do pai. Hoje, falam pouco e o que dizem são banalidades tranquilas e os seus gestos são lentos e displicentes e parecem, propositadamente, exibir a vontade de não ir a parte alguma. Não falam de horários, nem combinam encontrar-se, nem prometem não atrasar-se. Ouvem rádio. Comentam os comentadores, trocam ensonados Bons dias! E têm tempo para sorrir e falar de coisa nenhuma.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XIII

 

Rotinas – XIII

– Vieste-te?
– Hum, hum…
– Desculpa.
– Desculpa.
– Ela ou eu?
– Tu!
– De que falas?
– Disto.
– Nunca perceberás, pois não?
– O quê?

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XII

 

Rotinas – XII

Sexta-feira é dia de limpezas. E o que de mais importante se limpa não é a casa. Aproveita Maria de Lurdes a nuvem de tarefas, das pequeninas às mais significativas, para ir lavando também a alma. É como se cirandassem pela casa duas mulheres. Uma, de corpo envolvido no arredar dos móveis, no limpar do pó, no sacudir dos panos, no varrer e no aspirar dos chãos, no substituir das roupas de cama, no passar de óleo de cedro pelas mobílias, no remover das teias que as aranhas só começaram a formar, no passar pressuroso da esfregona mergulhada em detergente com odor a lavanda pelo chão, no re-arrumar de livros, cêdês, comandos diversos, objectos que perderam o norte ao seu lugar, no posicionar preciso dos bibelôs, no passar do pano cuidadoso por cima das molduras, no substituir de águas no balde, no limpar de restos e marcas pelas mesas e bancadas, no deixar a brilhar como novo o fogão manchado de vapores e gorduras apesar das folhas de alumínio a circundar os bicos, no lavar das janelas a terminar com um pano seco que finalmente elimina as impressões digitais que lá foram ficando. Esta Maria de Lurdes anda de cabelo envolto num lenço, enfiada numa bata colorida com dois bolsos à frente donde pendem dois panos, um para o pó, outro para os vidros. A outra, de pensamento alheado, anda lavando a alma e gosta da sexta-feira porque ela é a catarse do dia anterior que havia sido a catarse da semana inteira. Enquanto limpa e arruma revê as conversas, acerta as ideias e pode distrair-se desse sonho impossível de ser livre e desbocada como Gininha e Hortense e de viver as vidas das pessoas nas revistas.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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Da Serra ao Mar

Depois de uma semana difícil e antes de uma semana que se anuncia perfeitamente alucinante, um sábado entre o cume da Serra D’Aire e Candeeiros e o mar!
Memórias de um dia que a semana promete apagar rapidamente.
Entretanto, sei que estou a demorar um bocadinho a publicar o próximo capítulo de “De Negro Vestida”. Já está escrito só falta rever e passar… Grato pelo incentivo de todos.



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Ao almoço

Caros amigos,
quem consegue almoçar num dia de trabalho, entre duas reuniões, num local com uma vista e um céu assim, das duas uma: ou é ribatejano ou é um sortudo… em todo o caso devia ser castigado…
Se quiserem saber onde foi, perguntem… hihihi…

O próximo capítulo está quase, quase…

Um abraço,
João Paulo


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De Negro Vestida – XI

Rotinas – XI

Ela ainda está de joelhos em cima da cama mas já deixou cair os braços ao longo do corpo. Tem o pescoço vergado, olhando o edredão como que procurando nele uma solução. A camisola interior dele está-lhe larga mas permite perceber o volume generoso e redondo dos seios jovens. Ele está de pé junto à cama, olha-a, e tem no olhar um pedido de compreensão. Tem umas calças de fato em fazenda cinzenta, uma camisa branca e uma gravata em encarnado escuro, tom de cereja. O casaco do fato está dobrado no seu braço esquerdo e quando devia estar calado, esperar que o tempo fizesse o seu trabalho, falou:
– Que me dizes se…
E mais não foi preciso. Ela esperava assentar as ideias e os impulsos e a voz dele era um ruído nesse processo, uma provocação só por ser a voz dele, independentemente do conteúdo. Emerge nela a raiva e o despudor da linguagem:
– Cabrão, mentiroso…

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – X

 

Rotinas – X

Ao preparar o jantar de quinta-feira, Maria de Lurdes está tão alheada como estava ao pequeno-almoço. Agora, já não por via da antecipação mas por causa do enlevo. Um dia dedicado a si, ao perfume químico do salão, à conversa de Hortense, aos cuidados de Teresinha, a um almoço tranquilo e à invasão da ousadia de Gininha, deixa-a leve, tranquila, predisposta para o bem e nas nuvens das vidas que sabe não viverá mas com que sonha todas as quintas-feiras à noite. E quando a família abandona, como de costume, a mesa do jantar, Maria de Lurdes vai deitar-se. Protege o cabelo, veste a camisa-de-noite e deita-se na cama olhando o tecto como se fosse o céu das possibilidades. Está semi-recostada, com os braços por fora da roupa da cama e as mãos cruzadas. E tem um sorriso. Um sorriso que, mesmo sem Maria de Lurdes saber, assusta profundamente Carlos Manuel.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – IX

Rotinas – IX

Onde quer que entre, quando Gininha entra nalgum lado, a vida entra consigo. Uma pastelaria, um pronto-a-vestir, um restaurante, uma farmácia ou um salão de cabeleireiro são inundados pela cor que sempre a acompanha, pelo perfume que transporta, pela pose que exibe e pela voz que anuncia a sua presença e a marca. O parágrafo que agora redigimos está mal começado. Usámos o verbo entrar, três vezes repetido na mesma frase, contrariando ensinamentos antigos de um professor primário de voz grave e mão pesada, porque entrando estava Gininha na Pastelaria Avenida, no entanto, o efeito que esta pujante manifestação de vida causa faz-se sentir, a bem dizer, sempre que passa e passar deveria ter sido o verbo. E, ao fazê-lo, os homens levantam os olhos dos jornais de esplanada, viram a cabeça para trás contrariando o sentido da caminhada que levam, dão toques de cotovelo, abrem janelas de automóveis e contemplam a pose e a pompa, o espectáculo de luz e cor, a energia de vida que é ver Gininha passando, estando ou entrando numa pastelaria como agora faz. Tem um espírito independente e livre, tem uma atitude ousada e um comportamento vistoso e, ao contrário do que temos visto neste mundo em que viemos passar uma vida, Gininha não é assim porque coloque uma qualquer máscara ou accione um qualquer mecanismo de defesa. É assim genuinamente sendo assim. Extrovertida nas palavras, no olhar, no vestir e, claro, no andar com que se transporta pelas ruas.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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Diz-me Tu

Os teus olhos dizem mais
Que as palavras, que os silêncios, que os sinais
Os teus olhos e esta luz
Que os acende quem os entende
Diz-me tu

Diz-me tu
Se a solidão faz o amor ver melhor na escuridão

Quem me diz
Onde estão
Os teus braços e os meus passos para onde vão

Diz-me tu
Para onde vão
E as memórias e as cinzas frias da paixão

Diz-me tu
Se a solidão
Faz o amor ver melhor na escuridão

Quem me diz
Onde estão
Os teus braços e os meus passos para onde vão

Quem me diz
Onde estão
Os teus braços e os meus passos para onde vão

Diz-me tu
Para onde vão
E as memórias e as cinzas frias da paixão

Paulo Gonzo


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De Negro Vestida – VIII

 

Rotinas – VIII

O dia amanheceu com gestos pequeninos, miudinhos, como se, por se fazerem menores, se fizessem em menos tempo. Maria de Lurdes põe o mesmo pequeno-almoço na mesa mas põe-no de forma diferente. Não na disposição dos lugares de cada um, nem na festa de luz e cor e cheiros que aviva a mesa, mas na forma menos pausada e mais sussurradamente apressada com que prepara a refeição inaugural do dia. Não pretende dar a ideia de que quer despachá-los para fora de casa, mas dá. É indisfarçável a energia ansiosa que lhe atravessa o brilho do olhar, os gestos nervosos de trazer e levar e quando se cruza com um deles no espaço amplo da cozinha, em vez de esperar tranquilamente, com a tranquilidade que todos lhe reconhecem de mãe e mulher, que passe, apressa-o com um Vá lá, vá lá! fazendo com a mão um gesto de Apressa-te e passa! Lembrando os sinaleiros que noutros tempos serpenteavam a cidade.
E, à quinta-feira, quando os vê partir, em debandada da sua vida para a vida deles, não sente o rasgar interior nem o impulso de os reter. Larga-os livremente para a liberdade deles que, neste dia, é também a sua. Normalmente, quando sente que já não estão no prédio, exclama Ora, ora… como quem pensa Por onde vou começar a vida que há hoje para viver?
Ao pequeno-almoço, o marido repetira, como quem confirma, aquilo que diz todas as quintas-feiras à mesa:
– Hoje é dia de Gininha?
– Hum, hum…
Ele já sabia a pergunta e a resposta para ela. Ela já sabia a resposta e a pergunta para ela. Ele sabia, já, que não viria almoçar a casa porque nunca vem. Habituou-se, há muito, a este ritual e respeita-o. Interiormente considera-o como uma espécie de grito do Ipiranga semanal da sua mulher. Admite-lho porque, de quando em vez, também solta o seu.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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