Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVIII)

Noite Fria (XXVIII)

Uma cama de hotel digno mas sem luxos. Um utilitário. Lençóis brancos. Ar aquecido. Roupa masculina e feminina serpenteando o chão e os móveis deixando-nos saber que a entrada no quarto fora arfada e fugosa. Um corpo viril e suado, com claros sinais de estar em boa forma adquirida no ginásio está deitado na cama com as mãos presas à cabeceira com um par de algemas. O rapaz geme de prazer como se quisesse conter a explosão que vai seguir-se mas não fosse capaz. Em cima de si balança-se, em ritmo certo e crescente, um corpo feminino esguio e, contudo, sólido. Está encaixada no sexo erecto dele, projecta para a frente um braço e assenta a mão no peito dele e deixa para trás o outro braço cuja mão assenta numa coxa musculada do jovem suado. E movimenta-se em cima dele provocando e esperando a alegria da explosão quente que acolherá dentro de si.

O que tinha de acontecer, aconteceu e ela tomba a cabeça para trás e fica saboreando o momento de prazer. Maria de Fátima está saciada e tem um compromisso. Levanta-se devagar e deixa o seu jovem musculado companheiro algemado à cama.
– Não vais deixar-me aqui, pois não?
– Por acaso vou.
– ‘Tás maluca?!
– Calma, não é para sempre. É só enquanto tomo um duche.
– Tu és louca?!
– Não. Apenas não quero que me agarres com as tuas tentadoras mãos porque tenho de estar a horas noutro local…

O duche foi rápido. Cumpriu a higiénica função e mais não lhe foi exigido. Maria de Fátima vem saindo da casa-de-banho envolta numa toalha branca justa ao corpo, presa por cima dos seios, realçando-lhe as formas e sacode os cabelos molhados com uma mão enquanto agita a cabeça. O rapaz está dormitando na letargia que sempre ataca quem acabou de dar o suor e o sémen. O corpo escorregou e estendeu-se totalmente e os braços ficaram pendurados das algemas. Ela veste-se, rápida. Não veste as cuecas pretas e deposita-lhas no ventre. Como que a não querer entranhar-se do suor dele, beija-o na testa e abre-lhe as algemas. Ele pressente-a e pergunta:
– Amas-me?
– Amo. Muito.

Sai do quarto composta, fecha a porta nas suas costas, ergue os ombros e olha a vida em frente e quando começa a atravessar o corredor em direcção ao elevador diz alto para poder ouvir-se a si própria:
– A ti, e a todos os outros!


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Homenagem

Aqui se interrompe a narração de “Estórias ao Acaso: Noite Fria” para, em palavras breves, se prestar uma singela e sentida homenagem.Faz hoje onze anos que morreu um homem que faria amanhã 76 anos.
Foi o mais extraordinário homem que conheci até hoje. Na sensibilidade, na honestidade, na educação e no respeito pelo próximo. No amor pela sua família. Na arte com que criou os filhos e os ensinou a superar as dificuldades da vida.

Obrigado Pai.
És insubstituível e viverás para sempre na nossa memória e nos nossos corações.

O teu rapaz.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVII)

Noite Fria (XXVII)

A casa onde mora o desiludido amante das palavras, com as palavras, pelas palavras, está impecavelmente arrumada. Como se este homem estivesse à espera de alguém para jantar. A sala onde o vemos agora junto a uma janela contemplando o exterior tem um aspecto austero. Móveis, só os necessários. Objectos em cima deles, ainda menos do que isso e os que se vêem estão organizados como se houvesse uma ordem geométrica a presidir à sua disposição. A noite cai fria e, se há um convidado esta noite, não deve estar atrasado porque não dá este homem quaisquer sinais de impaciência ou, sequer, de uma espera mais sofrida. Está de pé, olhando a rua com as mãos atrás das costas. Está só. Por fora e por dentro. Sente a solidão profunda de quem caminhou um caminho sozinho e não encontrou o que procurava. Só um beco sem saída. Só o desengano. Só o desespero. O desespero de quem se perde para a vida sem, ao menos, ter a desculpa de ter sido enganado no percurso a seguir. Nada disso. Cada passada fora dada com a força das suas convicções, com a fé e o crer de quem ama e crê que é amado. E deixou um rasto de sofrimento e erros que o envergonham. Como pôde enganar-se daquela forma? Desperdiçou uma família em busca de uma quimera e quando lá chegou não encontrou uma nem outra. Só o desespero e a solidão dos seus erros. Só uma vida errada. Percebe, agora, a sua ambição, o excesso dela. Percebe agora que desafiou os deuses mais do que poderia suportar. Quis mais, além do muito que tinha ainda que não se apercebesse o quanto esse muito significava. Quis viver duas vidas no espaço de uma. Quis poder o que os homens não podem. E foi amado. Pelos filhos. Pela mulher. Por ela. Mas à vida, não nos cabe controlá-la. Só vivê-la. Uma vez. E o seu excesso, a sua “hybris” fora castigada. E sabe que não se assumem responsabilidades só porque alguém diz Eu assumo as responsabilidades. Assumem-se quando alguém paga o preço dos seus actos e sofre as consequências deles. Não conhece este homem o preço a pagar pela família que destruíu mas descobri-lo-á em si.

A neblina que há uns dias lhe toldava o olhar e o pensamento foi-se desvanecendo aos poucos e na medida exacta da compreensão dos seus actos e da amplitude das consequências deles. Está tranquilo e tem no olhar essa calma e essa serenidade que invadem os homens que encontraram em si a solução para os problemas por si causados. Já não é tempo de tragédia que tragédia foi o desmoronar das vidas que o rodeavam. Já não é tempo de sentir-se encurralado nem envergonhado porque encontrou, já, a saída e a forma de resgatar a sua honra e a sua dignidade.

Volta as costas à janela por onde olhava a rua sem a ver, só para entreter a vista enquanto pensava, e dirige-se para este sofá de um lugar só. É aqui que costuma ler. É aqui que costuma entregar-se ao pensamento e à televisão, agora desligada, e é aqui que tantas vezes costuma adormecer. Enterra-se no sofá e deixa-se absorver pelo seu conforto como se nada mais houvesse na vida que valesse a pena ser vivido.

A convidada da noite entrou na casa. Veio silenciosa e fria. Não necessitou bater à porta nem que lha abrissem e não quis ser apresentada. Nem precisava. A esta casa não veio porque assim o tivesse decidido. Veio porque fora convidada.

Este homem que aqui vemos enterrado no seu sofá, no universo da sua sala e da sua intimidade tem um braço sobre o colo e o outro descaído e abandonado para fora da poltrona. Adormeceu, já, pela última vez e dentro de momentos estará frio.

Ao lado do sofá confortável está uma mesinha de chá e em cima dela um frasco de comprimidos vazio do seu conteúdo. O frasco não está tombado, nem há comprimidos derramados o que pode induzir leituras diversas sendo a mais segura a convicção dos gestos de quem os praticou. Aqui há-de chegar um homem diplomado de médico e há-de escrever o óbito e a causa dele. E aí figurará a morte causada por ingestão indevida e excessiva de um químico não prescrito e cuja identificação em nada acrescenta a esta estória. Nada mais errado que andamos nós, pequenos humanos, atribuindo aos instrumentos as causas sendo estas de outra ordem. Mais certo estaria o médico que escrevesse no óbito Este homem morreu de amar e não ser amado, morreu de desgosto pungente, agonizou em desespero e vergonha pelos seus actos. Mas vemos isto, sabemos isto e continuamos a dizer que a causa da morte foram os comprimidos, o veneno, o laço na corda, no cinto, a ponta da faca, o comboio que passava… e teimamos no erro e sempre que o fazemos perdemos uma oportunidade de tentar perceber onde radica a causa. Que solidão é esta que nos traz morrendo a vida mergulhados em desespero?!

Os serviços fúnebres terminaram há momentos. O cemitério encontra-se quase deserto de lágrimas e sussuros. Restam alguns amigos mais íntimos que vão encolhendo os ombros, enfiando as mãos nos bolsos das calças e afastando-se lentamente do local onde o deixaram, só, para a eternidade. Outros abanam as cabeças em sinal negativo como que dizendo que não à inevitabilidade da morte. Junto à sepultura recente restam duas silhuetas femininas, de negro vestidas. Uma mulher informou outra e as duas estiveram presentes e aqui estão olhando o chão. Não se falaram que nada havia para dizer. Vieram ambas retribuir crisântemos. Flores que ele oferecia para as fazer sorrir e que agora marcam a sua despedida em silêncio. Tem este estranho poder a morte que é o de separar os mortos dos vivos e unir os vivos aos vivos. É como se o seu peso e a sua força exigisse que sejamos mais do que a nossa individualidade para podermos enfrentá-la.

Lá fora, José António espera no carro e quando ela chega e entra na viatura, ele faz-lhe uma festa terna na face e beija-a suavemente nos lábios.

– Gostavas muito deste teu amigo…
– Muito! Mesmo muito. Posso mesmo dizer que foi mais do que um amigo.