Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVII)

Noite Fria (XVII)

Vertendo-se com frequência e facilidade as palavras em sentimentos, o que este homem mais sente é NÃO. Não à impossibilidade de um amor que o despertara para a vida. Não ao fim das palavras entre os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Não à forma absurda como se interrompeu uma noite de amor. Não à forma lúcida e racional com que ela pusera um fim ao que parecia não ter fim. Não.

E os dias foram-se sucedendo e com eles foi crescendo esta revolta surda e amordaçada de quem quer gritar um amor e tem de o calar. À medida que os dias passavam e com eles as pequenas coisas e os pequenos gestos que os preenchem se acumulavam foi desdenhando cada um deles, dos gestos e dos dias. Negou de si para consigo a aceitação daquela decisão. Planeou vezes sem conta falar com ela, fazer-lhe juras de amor, prometer-lhe uma vida, abdicar de tudo e ser só seu. Planeou. Mas não executou. Sempre que estas ideias lhe ocorriam seguia-se um sentimento de crime e impunidade se abandonasse a sua família, aquela que construíu com as suas próprias mãos e os gestos delas. Após a negação da morte daquele amor e daquela relação de entendimento e sintonia, veio um tempo em que decidiu aceitar que haviam na sua vida duas mulheres, duas paixões, duas dedicações que se lhe tinham atravessado no caminho em alturas distintas do seu curso. E constatou. Constatou as duas mulheres que amava, os seus odores perfumados distintos e insubstituíveis, os seus timbres de voz marcando presenças e tonalidades diferentes nos dias, as suas peles suaves, os seus olhares, os sorrisos, as roupas, as palavras, as cumplicidades e o calor terno dos lábios de ambas. Aceitou que tinha uma só vida mas que nessa vida haviam duas mulheres. Não se substituíam, nem tão pouco uma poderia ocupar o lugar da outra. As duas tinham um espaço próprio na sua alma e no seu peito.

Acontece que o tempo tem um efeito domador das vontades nos homens. E a distância é um bálsamo para a ausência. E ela, lá longe, guardava consigo as palavras que agora não trocava com ele. E ele percebeu. Percebeu e aceitou. À medida que foi retomando as rotinas desta vida aqui presente, aquele que havia sido um amor intenso e fulgurante começou a constituir-se bruma e névoa da memória. Ao cabo de uns meses, a custo de dor, que é pior do que cortar um membro isto de calar um amor, foi aceitando. Aceitou a distância. Aceitou a decisão dela. Nunca a compreendeu exactamente. Para ele, ter-se-ia reatado o caminho do amor e ter-se-ia feito um hino ao amor e à glória da entrega. Ele amaria lá e cá. Seria capaz de abarcar no mesmo peito dois amores diferentes. Mas soube aceitar. Soube respeitar a vulnerabilidade dela, compreendeu o seu ponto de vista e a sua atitude e amou-a mais por isso. E, ao mesmo tempo, foi reamando quem o amava nesta vida. Nunca se decidiu verdadeiramente por uma delas, das mulheres e das vidas com elas, mas a presença duma e a ausência da outra apagavam a ausente e reacendiam a presente.

Hoje, neste dia de sol promissor, decidiu oferecer-se um café numa esplanada onde estão as gentes contemplando o tempo que passa, sentando-se na tranquilidade da tarde e pensando que o Céu bem podia ser assim. E está neste passar dos tempos limpando os pensamentos excedentes do cérebro bem como os contactos inúteis do telemóvel quando redescobre uma mensagem: “Amo-te incondicionalmente e para sempre!” Ficou pensando que para sempre era um valor extremado e absoluto como o era também incondicionalmente. E ele que pensara que havia nas razões dela para o abandonar toda uma lógica, toda uma gestão de sentimentos, todo um sentido ético e moral, sobressaltou-se pensando que poderia ter-se tratado, só e sem mais, de um sacrifício na impossibilidade de uma realização. Ela tinha, como todas as mulheres, um apuradíssimo sentido de posse e preferia não ter aquele homem para si em medida nenhuma do que partilhá-lo. Esta hipótese acordou-lhe a imensidão do gesto dela. A grandiosidade do seu amor. O tempo que levara a perceber isto…

E, súbito, como se a sua mente tivesse escolhido aquela tarde de esplanada e café forte à luz de uma promessa solarenga para as revelações interiores no encontro de si em si, percebeu que ainda não tinha feito nada. Limitara-se a esperar que uma das suas vidas sucumbisse à outra. Não tinha havido da sua parte um gesto de coragem, uma decisão, um agarrar da vida. As mulheres que o rodeavam debatiam-se por si mais do que ele próprio. Constatou em nome da sua dignidade que a vida não consiste em esperar que a vida aconteça mas é, antes, determinada pelas nossas opções e actos. Havia pensado muita vez nas consequências dos seus actos em terceiros e deixara-se condicionar por isso. Faltava pensar em si próprio. No que queria. Convencera-se de que a lógica dela para o rejeitar era válida porque se acomodara e não se dera ao trabalho de perscrutar a sua própria lógica.

Tinha numa mão uma vida de partilha construída a dois, depois a três e por fim a quatro, uma família. E também uma rotina e muitos cansaços. Tinha na outra a promessa de um amor puro e dedicado, de uma força, de uma companhia. Não podia continuar a ignorar que havia duas vidas que o disputavam, nem podia continuar a adiar optar por uma delas.

Quando se levantou da esplanda e deixou umas moedas jazendo à volta da chávena do café e encarou a luz promissora da manhã, já sabia no seu íntimo o que ia fazer mesmo que a decisão ainda não tivesse chegado à superfície.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVI)

Noite Fria (XVI)

O silêncio é profundo. O ambiente é de trabalho concentrado e os diversos colegas que partilham o espaço não querem comprometer tal concentração. Paira no ar um silêncio de produção. E esta harmonia de fazer em conjunto e em conjunto feita é cortada pelo toque inevitável do telemóvel dele. Normalmente desligá-lo-ia sem hesitar, procuraria um lugar onde pudesse falar e ligava de volta a quem quer que fosse que lhe tivesse tocado à porta da vida. Desta vez, não pensou duas vezes, não esboçou gestos incertos, levou o telefone ao ouvido e atendeu-o. O nome dela brilhava no visor e aquela ligação era mais para si do que um telefonema. Era a vida a reconectar-se. Com o aparelho encostado ao ouvido foi-se retirando da sala de trabalho sob o olhar acusador dos presentes. Um deles chegou mesmo a abanar a cabeça em sinal de reprovação enquanto pensava se aquele tipo não sabia que havia modo silencioso. Acontece que há coisas mais fortes do que outras e este telefonema fá-lo-ia nem que tivesse de sacrificar a reputação no trabalho. Não foi preciso tanto e a conversa aconteceu na mesma e mais ou menos como a seguir se verá.

– Olá! Ainda bem que ligaste. Queria tanto falar contigo.
– Sim, temos muito para conversar. Também preciso muito falar contigo.
– Ouve, queria começar por pedir-te desculpa…
– Não faças isso. Não há desculpas a pedir. Pelo menos a mim. Olha, como está o teu filho?
– Está bem mas tinhas razão só nos despachámos do hospital no outro dia quase à hora de almoço e foi preciso levar o mais velho à escola e a farmácia e… Mas olha, não falemos disso. Temos tanta coisa para conversar. Aconteceram coisas tão bonitas…
– Sim, aconteceram. Mas também aconteceram algumas que me fizeram pensar muito.
– Eu sei, pensei nisso tudo e acho que temos de viver a vida… ela é tão curta e nós amamo-nos tanto. Amo-te muito.
– Também te amo muito. Sabes, estou a desviar-me um bocadinho daquilo que queria dizer-te…
– Sim… diz.
– Eu não queria falar contigo sobre nós ao telefone. Queria olhar-te nos olhos e queria que me olhasses nos olhos. Tu podes, sem te forçar a nada, vir até aqui para conversarmos um bocadinho?… não precisa ser hoje…
– Mas será!

O narrador desta estória está perturbado com o valor e com o poder das palavras. Quando lhe disse há pouco o que queria que narrasse ripostou-me que esses mesmos gestos já os narrara uma vez nesse mesmo cenário afirmando que eu, enquanto autor, me estava a repetir. Julgo, até, que insinuou que eu estava ficando senil. Foi então que lhe disse que seria tudo igual excepto as palavras e quando pediu que lhas revelasse para as poder narrar ripostou, sério, mas essas palavras mudam muito, mudam tudo. São outros gestos. E ali ficámos conversando, autor e narrador, sobre as palavras enquanto gestos, se não seriam o mais fundamental deles, o mais poderoso e, simultaneamente, o mais banal. Condordámos, inclusive, que a expressão olha para o que eu faço, não olhes para o que eu digo é absolutamente ridícula porquanto dizer é já fazer também.

Encontraram-se no mesmo local do primeiro reencontro, sensivelmente à mesma hora. O sol tinha menos força agora e o abraço que deram teve menos corpo, teve menos tempo, foi igualmente cúmplice. Não é que não sentissem o mesmo amor e a mesma paixão que sentiam então, acontece porém, que a mesma vida que os unira estava agora intrometendo-se entre eles. E um abraço longo, de total dádiva, de peito aberto e alma limpa não se dá quando há assuntos pendentes estorvando a clarividência da mente e a limpeza dos gestos. Os passos dos amantes aprendem os caminhos do amor e as suas passadas repetem-se e os corpos andam enquanto os amantes dizem as coisas que precisam dizer. Talvez por isso, ele e ela percorreram as mesmas ruas, junto aos mesmos prédios do mesmo lado do passeio e crê-se, até, que se tenham cruzado com a mesma velhinha. As palavras não foram as mesmas. Não foram o crescendo de emoção que haviam sido, não foram o exteriorizar de corações sobressaltados pela paixão nem levavam consigo o brilho que o olhar tivera então. Estas palavras que vão trocando agora são banalidades de como está o tempo, como vai o trabalho, estás bonita, bonito estás tu. Palavras que não dizendo nada tinham uma função. Adiavam as outras que haveriam de ser ditas quando pudessem olhar-se nos olhos.

Como se soubesse a cidade inteira que estes dois precisam conversar, o banco onde se haviam enroscado nas memórias gratas e sentidas do passado está livre. E é nele que se sentam. Não é um jardim rebrilhando a luz de um dia de Verão. Não tem essa alegria nem essa pujança mas a penumbra que se anuncia aos poucos dá-lhe um ambiente mais privado. Ali estão, olhos nos olhos, as mãos entregues umas nas outras, o olhar terno encontrando-se o amor, perscrutando-se as possibilidades e as impossibilidades. No peito dele cavalga um coração ansioso e expectante. Moram em si as esperanças todas. Pensou em tudo que precisava dizer-lhe para retomarem a rota do amor e da felicidade. Trata-se de uma expectativa peuril e masculina. Pueril porque encara cada situação como uma oportunidade para além de todas as contrariedades. Masculina porque, vencido o susto e a tormenta de uma noite perfeita desfeita pela evidência de não poder separar em si as duas vidas que tem, está já separando-as de novo.

– Meu amor, minha querida, queria tanto, precisava tanto dizer-te tantas coisas. A minha cabeça ferve, o meu coração bate louco. Fiz tanto para que estivessemos juntos, para que o amor que nos une se revelasse e depois…
– Espera! Deixa-me falar a mim hoje. Eu sei tudo o que te devo. Eu sei e relembro com um amor imenso todas as coisas extraordinárias que me fizeste sentir. Eu sei como te dedicaste a nós, ao nosso amor. Eu amo-te muito, mas hoje deixa-me falar primeiro. Sabes, quando uma mulher ama só o consegue fazer com dedicação total e total compromisso. Uma mulher que ama fá-lo na entrega absoluta do seu ser. É a única altura em que fica vulnerável. E não espera nada de volta. Dá por dar, porque é essa a sua condição. Mas só pode dar a um homem que seja seu, que lhe garanta a segurança do seu amor e que esteja disponível para retribuir-lhe. Eu não posso chamar-te meu, meu amor! Não posso mentir-me e dizer que temos um futuro juntos. Tu tens um futuro, tens uma vida e eu estou aqui e não vejo o meu futuro, nem vejo que vida seja esta em que te amo e não posso amar-te se um telefone tocar. Tu não és meu. Meu querido, eu sou mulher como a tua mulher e morro por dentro sempre que penso que podia estar no lugar dela e imagino o que desejaria que ela fizesse se estivesse no meu. Ela ama-te como eu te amo e penso até que não tem mais legitimidade do que eu para amar-te porque não há regras no amor, não há legitimidade para o que o nosso coração sente, mas ela tem a legitimidade de esperar por ti, de sentir a tua falta. Tem a legitimidade de chamar por ti quando precisar de ti. Ela tem a legitimidade de projectar a vossa vida e esperar que os vossos planos se cumpram no amor que se têm. Eu sei que estás dividido e, mais tarde ou mais cedo, terás de decidir-te mas eu não quero estar por perto quando o fizeres. Não quero determinar as tuas acções. Tens de ser livre para construir o teu caminho. A tua mulher é a tua mulher e eu amo-te e amei cada segundo que estivemos juntos, cada carícia, cada palavra, mas não consigo ser a outra, não consigo pensar na minha felicidade contruída sobre a infelicidade da tua mulher e dos teus filhos. Amo-te, não duvides nunca disso, não duvides nunca de todas as coisas que te disse, mas não posso amar-te. Quero-te mas não posso querer-te. Não assim. Se tivermos de ser um do outro, seremos, mas noutras circunstâncias, sem culpa, sem receio que uma voz metálica no outro lado do telefone estrague uma noite de amor porque não é legítima… Tens de ser livre para viver e amar. Tens de fazer as tuas escolhas e eu tenho de ter a mesma liberdade. Tenho de ter a dignidade de amar livremente. De amar plenamente. De amar tranquilamente.
– Mas, meu amor…
– Chiiiiiuuu! Disse ela baixinho, quase sussurrando, e foi apressando-se, carinhosa, em colocar-lhe um dedo nos lábios para o silenciar. Olhou-o ternamente e quando tirou o dedo dos lábios dele foi para colocar no seu lugar os seus próprios lábios e beijá-lo com ternura mas sem paixão.

Levantou-se e caminhou afastando-se dele, deixando-o nas suas costas enquanto as lágrimas se precipitavam no seu rosto…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XV)

Noite Fria (XV)

Ela não sabe ao certo quantos metros andou que não têm os humanos como medir senão com instrumentos ou por cálculo que sempre falha na precisão. Instrumentos não os tinha consigo pois vinha de uma noite de amor e desilusão e não estava ali porque andasse a medir espaços. O cálculo estaria sempre perturbado por tudo o que lhe ia na mente. Sabe o narrador desta estória que andou uns quinhentos ou seiscentos metros. Sabe ela que andou muito. Não pelo espaço percorrido mas pelo tempo passado. Têm os humanos esta particularidade que é a de medir o espaço em tempo. Habilita-nos isso a avançar que a distância normalmente percorrida em dez minutos, ou pouco mais, levou desta vez uns bem medidos quarenta e cinco minutos de reflexão, pensamentos turtuosos, avanços, recuos, decisões, indecisões e uma profusão de ideias e impulsos de acção que disparavam nas mais diversificadas direcções do sentir. Por vezes, estando a mente mais perturbada, parava o corpo e ficava olhando o chão, fitando uma árvore, um prédio para os quais olhava mas na realidade não via. Diversos foram os momentos em que apontou a biqueira elegante do sapato ao chão e ficou traçando o mesmo círculo até se perder o pensamento que estava conversando consigo. Outra curiosa e humana particularidade é a de percorrer-se caminho e não saber depois o que se percorreu, é a de andar entre a gente e não ver ninguém. Não foram muitas as pessoas que se cruzaram consigo. Um casal jovem e apaixonado, vestido de negro e cabedal, correntes pendentes da roupa e um cão rafeiro que os seguia. Dois homens, um alto e forte e o outro forte e baixo, os dois fumando e falando de futebol, mulheres e marcas de carros. Passou ainda um casal de jovens, ele de corpo esguio e cabelo espetado no espaço a afirmar a sua diferença, o outro dos jovens, também ele, tinha uma face mais clara, um olhar mais tímido e falavam de música, da que gostavam e da que não gostavam, levavam as mãos unidas e trocavam beijos pequeninos e furtivos.

Nada disto ela poderá algum dia garantir que viu. Jurará mais facilmente que percorreu toda a distância da sua humilhação sozinha, jurará que não havia ninguém na cidade nessa noite fria.

Este não foi um caminho de alívio. Começou por andar, como disse, porque precisava e terminou percebendo que andar não bastava. Esta mulher jovem e bonita que aqui vemos, deambulando e parando e evitando o caminho de casa e da cama onde a solidão e o desespero acabarão por vencer, sente-se humilhada. Não lhe disse a ele, mas, no momento em que ele atendera a chamada que interrompeu o amar nocturno, sentiu medo da voz longínqua e metálica do outro lado do telefone. Não percebia as palavras, mas senti-as como facadas cravadas nas suas faltas, nos seus pecados. Sentia-as como o castigo que temera mas ignorara por amor. Sentiu-se como a criança que fora apanhada a meio da malandrice e a quem não resta senão encolher os ombros e olhar o chão. Estava, por isso, envergonhada. Envergonhada de usar uma liberdade que não era sua. Humilhada por não ter antecipado a vergonha. Por se ter roubado a si mesma e conscientemente a liberdade de responder, de reclamar, de exigir, este homem é meu porque o amo, porque o tenho para mim como me tem para si…

Quando entrou em casa sentiu-se uma estranha no seu próprio espaço porque nunca havia ali entrado tão vulnerável… que fazer agora? Aguardar um telefonema? Esperar que a vida resolva os problemas que eram seus por si criados? Não. Ao menos a dignidade de decidir as suas passadas. Com a coragem que lhe restava conseguiu emergir senhora de dois cenários, conseguiu configurar duas possibilidades de vida. Qualquer uma delas exigia que agisse. Digna e honesta. Ou lutaria por ele e usaria de todas as suas forças para que entrasse definitivamente na esfera da sua vida, ou o abandonaria à vida que o tinha preso oferecendo-lhe a liberdade absoluta de decisão. A primeira implicaria mais determinação, o assumir do curso da vida. O preço a pagar poderia ser elevado. Ninguém gosta de construir a sua felicidade em cima da infelicidade de outrém! A segunda seria mais cómoda na acção mas mais dolorosa porque é de dor que falamos quando alguém abdica de um amor! A segunda implicaria também que se afastasse porque não se dá liberdade a outrém interferindo no seu julgamento.

Esta mulher bonita e dilacerada que aqui vemos de roupão e cabelo molhado vem do duche. Tentou lavar a alma com água quente e shampô. Reconfortou o corpo. A mais não teve direito. Procurou a cama e fechou-se nela. Cobriu a cabeça na tentativa inglória de apagar o mundo à sua volta. Está enroscada, em posição fetal e, se pudesse e tivesse coragem para tanto, chamaria sua mãe e pediria um mimo, um carinho, uma palavra de perdão. Mas há coisas que passam o seu tempo na vida e deixam de poder pedir-se. Esta mulher que aqui vemos no breu dos lençóis cobrindo a sua existência e a vergonha dela está soluçando baixinho quase como se não sentisse no direito de chorar. Sente que, como Ícaro, desejou demais, quis o sol da vida e acabou vítima dessa ambição. Encolhe-se um pouco mais sobre si mesma. Parou o choro. Só conseguiu adormecer depois de decidir-se por uma das duas possibilidades de vida que encontrou. Decidiu viver e o critério seria a dignidade!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIV)

Noite Fria (XIV)

O Carro engole, veloz, os traços descontínuos que separam as vias. Ele desliza em excesso de velocidade. Sabe-o. Ignora-o. Vive uma vertigem de loucura e, súbito, a sua vida parece ter perdido importância. Mergulha na estrada nocturna direito à vida que o espera, que clama por ele e que o mata. A raiva que sente não é contra ninguém. Não é contra ela cujo semblante meigo e doce recorda em flashes que magoam a alma e apertam o peito. Não é contra a outra vida, nem ninguém nela. Percebe onde pertence, a quem pertence, percebe as suas responsabilidades e as prioridades a que obrigam. Percebe que a força da outra vida se sobrepõe e domina esta. Só não percebe porque tem de ser assim. Só não percebe porque nos dá Deus tantas vidas e nos obriga depois a escolher uma, a viver uma, amarrados a um percurso. A raiva que sente é contra esta impotência, é contra ter sabido que estas vidas haveriam de colidir, que uma decisão assim teria de ser tomada, e não poder salvá-las ambas, não poder vivê-las ambas. Recorda com carinho os momentos de amor que acabara de viver, o jantar, o mar, as carícias, o quase fazer amor que valeu por muitas vezes em que o ritual fora vivido sem chama. Recorda e revolta-se de novo. Este homem que aqui vai conduzindo um carro, conduzido pelos desencontros da vida, vive o que deve mas não vive o que quer e deixa para trás uma vida quebrada. Sente no peito um aperto, o aperto de saber que algo se quebrou. Consegue convencer-se de que lhe ligará, de que voltarão a fazer tudo de novo, de que recuperarão a aura e a energia de amar que pairou naquela noite perfumada de velas e mar. Mas sente um aperto no peito e identifica-o. É o receio, o medo de que algo se tenha quebrado para sempre. Não sabe porquê mas teme-o.

À medida que a estrada sucumbe à sua passagem e o espaço que o separa de quem o espera se encurta consegue lembrar-se dos últimos momentos com ela, das últimas palavras que trocaram.

– Tenho de ir!
– É grave?
– É um dos miúdos. Está no hospital. Teve uma crise…
– Não te expliques. Vai. Precisam de ti…
– Sim, há coisas a tratar. Numa situação destas uma só pessoa é pouco.
– Sim calculo,vai…
– Podíamos fazer uma coisa, eu deixo-te no hotel, fazes o check in e esperas por mim. Regresso esta noite, quando muito de madrugada e podíamos…
– Não penses nisso. Não me peças isso. Agora não te peço nada, estás preocupado, é natural. Mas peço-te que amanhã ou um dia destes penses em mim, em como me sinto, assim, embaraçada, envergonhada. Isto acabaria por acontecer e sentiria sempre a humilhação de não poder reclamar para mim uma pessoa que amo tanto. Mas o facto é que não posso… a sério, vai…
– Deixa-me ao menos levar-te a casa.
– A casa, não, deixa-me uns bons metros antes para eu poder andar, preciso de andar.
– Obrigado. Amo-te!
– Também te amo!

Quando ela pronunciou estas palavras de amor, ainda eram palavras verdadeiras mas já não eram palavras abertas à vida e prenhes de esperança. Eram um epílogo. Ficou a uns bons quinhentos metros de casa e caminhou. Não temeu a cidade nocturna. Não sentiu o frio. Perdeu-se numa profunda conversa com a sua consciência. Precisava perceber o que acontecera, precisava situar-se e não sabia qual, mas sabia que precisava tomar uma decisão…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIII)

Noite Fria (XIII)

Ela era uma mulher de mar. Tranquila e serena como só o mar. Agreste e revolta como só o mar. Firme. E, sobretudo, de uma alma imensa mergulhada na tranquilidade que soube conquistar à vida. Tinha no andar o ondular suave de certos mares e tinha no olhar o horizonte dele!

– Claro que sim. Vamos ver o mar.
A viagem durou poucos minutos. Ou, pelo menos, poucos lhes pareceram. No caminho, ele foi tocando a mão que ela abandonara no regaço. E estiveram brincando, mais do que conversando. E as palavras que trocaram foram sobre o jantar, primeiro, como tinha constituído um momento belo e intenso, uma harmonia de estarem juntos. Depois falaram do mar como se antecipassem vê-lo. E andaram vagueando nas palavras, trocando ideias com elas e trocando-as a elas pelas ideias até que o mar se anunciou. Primeiro, pela força do som que estremece a terra. Depois, pelo branco da espuma a encristar a ondulação atlântica.

Quedaram-se sentados, recostados nos seus bancos, de mão dada, só. Sendo que dar as mãos e estar em harmonia não é coisa pouca nem com pouco se faz ou desfaz. E ali ficaram longos minutos contemplando a sequência irregular das batidas com que o mar vai castigando a areia. Os seus pensamentos separaram-se por momentos e enquanto ela imaginava a felicidade que seria ter este homem só para si, ele estava já fazendo amor com ela na bruma espessa da imaginação. E surpreendeu-se imaginando que estava com ela estando com ela. Os seus pensamentos reuniram-se de novo num ponto comum. Nenhum se movia, nenhum articulava uma palavra que fosse, nem pareciam pestanejar olhando o negrume do oceano nocturno cortado pelo brilho alvo na crista das ondas e desejaram ambos que aquele momento cristalizasse. Que parasse já o Universo porque a vida estava vivida. Ela, ou o que dela merecia ser vivido. Ficaram desejando o fim para que aquela noite fria de contemplar o oceano no calor das mãos dadas fosse a sua eternidade.

E aconteceu aquele acontecer entre as gentes, quando estão juntas e em silêncio, que é o silêncio não poder durar sempre e ser interrompido, em simultâneo, pelos dois. Não que quisessem falar um por cima do outro, ou primeiro do que o outro, mas porque até no estender do silêncio à luz da palavra articulada estavam em uníssono:
– Sabes que…
– Queria…
– Sim, diz…
– Não, tu primeiro…
– Seja, um de nós terá de dizer primeiro: queria que a vida parasse agora e restasse em nós só a memória desta noite.
– Sabes que não me importava de morrer já, se a morte fosse prolongar este momento pelos tempos todos.

Mais não disseram porque mais não precisava ser dito. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras calaram as palavras. Inclinaram-se um para o outro e foram percorrendo o caminho do desejo até que estivesse eliminado qualquer espaço entre si. Juntaram os lábios num beijo suave de aqui me tens, sou tua, aqui estou, sou teu. E abraçaram-se como se conseguem abraçar os amantes no espaço exíguo de um carro.
– Somos loucos!
– Pois somos. Saudavelmente loucos!

Ele inventou algum espaço mais entre o volante e o banco puxando-o para trás. Recostou-se e poisou o seu cotovelo na porta
desenhando um triângulo com o braço.

E foi nesse recanto, entre o coração e o braço dele que ela foi encostar a cabeleira farta anichando-se no seu colo. E ali, de frente para o mar, esqueceram-se do quarto. Tapou-lhe as formas delicadas do corpo com o sobretudo e deixou as mãos navegarem o seu corpo por baixo do vestido. Beijaram-se. Continuaram a beijar-se. Acariciou-lhe os seios e acabou beijando-os também. Só não viu que eram rosados porque a noite escondia esse segredo. E que não escondesse, não veria na mesma porque tem os olhos fechados. Basta-lhe o tacto, o odor e o retorno dos movimentos dela. A Natureza viu a intimidade dos gestos crescer e juntou à discrição do breu nocturno o embaciado dos vidros. Num puxão seco e forte, rompeu-lhe a tira frágil da lingerie e acariciou-lhe o calor húmido do sexo. Ela ajeitou-se no espaço, entregando-se à carícia. A noite corria perfeita. Estava perfeita. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras inauguram outras linguagens e exploram universos onde as palavras sabem a pouco. E estão neste afã dedicado e ferveroso quando um ruído abafado e artificial corta o silêncio e o murmurar sensual que o enfeitava. Um telefone, por prudência ligado, por artificial ilusão de privacidade deixado em modo de vibrar, vibrou. Era o dele. A outra vida estava ao telefone. Ela endireita-se no seu banco, ajeita as roupas e recompõe a figura como se a voz que do outro lado clama “Estou? Quem fala? És tu?” estivesse ali batendo na janela do carro tentando ver para além do embaciado. Sentiu-se violada na sua privacidade e, ao mesmo tempo, sem direito a ela! Ele compôs mais a voz do que o resto, que as mãos dela também haviam feito despojos de amar, e saíu do carro como que a querer separar os dois mundos, as duas vidas. Como que a querer preservar esta da intromissão invasiva da outra:

– Disse para me ligares só em caso de urgência… O quê? Quando? Sim, claro. Para já!

Regressa ao carro e ainda não chora por fora mas traz já o peito despedaçado, a alma desiludida. Ainda não teve tempo para nada senão para reagir à presença da outra vida nesta, ainda não consegue vislumbrar o dia perfeito e a perfeita noite desfazendo-se debaixo dos pés e sente já um corte profundo, uma ausência, uma lástima. Reentra no carro, senta-se. Olha em frente o mar esbracejando e sacudindo, com violência, a areia. Respira fundo. Encontra coragem para encará-la nos olhos e diz num tom de voz controlado e sério:
-Tenho de ir!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XII)

Noite Fria (XII)

Por razões que nunca procurou perceber, ele empenhou-se mais no jantar do que no resto da noite.

Colocou toda a paixão de que era capaz na escolha do restaurante. Lugar tranquilo, urbano mas longe da centralidade ruidosa da cidade. Distinto. Reservou a mesa. Deu instruções precisas acerca de como a queria colocada. As velas, o frappé de pé, uma série de indicações desnecessárias que o pessoal do restaurante aceitou com benevolência e que, para eles, seria o repetir dos mesmos gestos de todos os dias. Para ele, seria mais do que uma refeição: um hino ao amor e à dedicação. E flores na mesa. Queria flores na mesa. Seleccionou da carta para aquele dia os pratos que lhe pareceram mais adequados ao carácter dela. E, se algo houve de extraordinário da sua parte na preparação do jantar das suas vidas, foi que nem por um segundo, nem por uma vez só, ele pensou em si, no seu gosto, nas suas opções. Aquele conjunto de tarefas e decisões para preparar o jantar em que celebrariam o seu amor foi toda uma dádiva.

Escolheu um hotel perto dali para que pudessem caminhar entre o restaurante e o quarto e a conversa seria a preparação do que havia de seguir-se, o amor primeiro antes do outro, os preliminares dos amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Fez questão que fosse digno mas não se aprimorou nos requintes. Aquele seria um espaço para a conversa dos corpos, que falassem, pois, sem muitas ajudas nem acessórios.

O dia correu veloz e miudinho. As coisas importantes pareciam-lhe banais, as banais dispensáveis. A sua ansiedade transportou-o diversas vezes ao local onde haveria de estar esta noite. Preparou frases, discursos, tiradas românticas e sérias e só mais tarde se aperceberia de que quando os amantes amam nada disso é necessário.

Ela está sentada à sua secretária de trabalho com um sorriso nos lábios. Sabe, de certo, que ele se esforça e, ao contrário dele, está tranquila. Quando uma mulher decide entregar-se, quando decide colocar a sua vida nas mãos do homem que ama, o mundo fica harmonioso e a força da decisão dota-a de firmeza e tranquilidade. O problema é chegar a decidir. Uma vez dado esse passo, resta abraçar a vida e nisso as mulheres são ímpares. Atravessou-a, ao longo do dia, um sentimento de alegria e segurança. Dedicou-se às pequenas tarefas como se fossem importantes e tratou as importantes com a atenção que mereciam. Não se preparou. Vinha preparando-se há quinze anos e esse tempo bastara-lhe.

A sala tem as luzes eléctricas propositadamente suavizadas e emerge o tom amarelecido das velas cujo odor cruza o espaço e predispõe as mentes para o coração. As flores são brancas e frescas. Alguém as salpicou porque estão orvalhadas e as gotículas de água rebrilham a luz envelhecida que os envolve. Além deste que nos interessa, estão por aí mais uns quantos casais, vários deles igualmente apaixonados. Nota-se no brilho do olhar, na abertura do rosto, no toque suave das mãos. É isso que ele está fazendo. Tem uma mão estendida sobre a mesa e brinca com os dedos frágeis dela. Ela trouxe um vestido preto, com um decote discreto e todo folhado. Dá-lhe mais volume do que realmente tem mas, sobretudo, confere leveza ao negro. Não tem jóias. Nem delas precisaria. As jóias que ela usa para embelezar-lhe a figura são as palavras bailando-lhe nos lábios, acariciando-lhe o coração, musicando-lhe a existência. E é por isso que ele está feliz.

À excepção de uma frase dela, mais adiante revelada, não nos interessa muito o que disseram os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Interessa-nos como o disseram. O tom da voz dele foi sempre pausado e ligeiramente grave. Ela foi mais límpida na voz e informal na atitude. Riu diversas vezes e depois olhou em volta como uma menina traquina que acabou de fazer alguma. Estava provocando-o. Ele aderiu e brincou também… Não fizeram juras de amor. Essas estavam feitas e não careciam repetição. Ficaram elogiando-se mutuamente as virtudes que é virtude da paixão esconder os defeitos aos olhos dos amantes.

Conversaram muito e francamente. Construíram, ou melhor, solidificaram ali uma relação de amizade com aquela consciência que os humanos vão tendo de que os amantes crescem nos alicerces da amizade. E o mais extraordinário foi revelarem-se pormenores inéditos das suas vidas, gostos, pequenos pecados, rotinas, algumas alegrias e uma ou outra tristeza que qualquer um deles fez questão de atenuar.

Estavam saindo, inspirando o ar frio da noite, dando o corpo ao negro véu que todos os dias se abate sobre esta nossa Terra. Estavam preparando-se para continuar a amar-se com outras linguagens quando ela falou perguntando e surpreendendo:
– Levas-me a ver o mar?