Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVIII)

Noite Fria (XVIII)

Não fora uma conversa. Tinha sido uma discussão longa e extenuante. Ao cabo da mesma, em meio da profusão confusa de ideias que se atropelavam na sua mente e de impulsos de sentir que lhe atravessavam o corpo, emergia uma sensação de dever cumprido, de liberdade, de tranquilidade. Não obstante os problemas que sabia ter pela frente, a vida apresentava-se-lhe como uma planura a percorrer de acordo, apenas, com os seus princípios e a sua vontade. Nunca fora um homem aprisionado mas hoje sentia-se mais livre. Os dados estavam, definitivamente, lançados.

Do emaranhado de argumentações, de tolerâncias, de intolerâncias, de momentos mais tranquilos na conversa e de outros bem agitados pela violência das palavras limpando as feridas e jogando ao mundo as incompreensões, uma frase, dita por si, o tinha mantido seguro do seu rumo, orientado nos seus propósitos:
– Porque eu amo outra mulher!

Até chegar ao momento em que proferiu esta frase, o percurso não fora fácil. Não tanto pela conversa com a sua mulher desta vida, mais pela conversa consigo próprio até conseguir justificar-se perante si, preparar-se, perceber as suas intenções e as razões por detrás delas.
Decidiu separar-se, divorciar-se. Ir em busca da outra felicidade. Daquela que era alimentada por uma chama verdadeira de verdadeiro amor. Decidiu depurar-se de ter, de possuir, das regras, do casamento. Decidiu simplificar a vida e os seus processos. Não fora fácil. Nada fácil. E sempre que equacionara os filhos, hesitara. Sabia exactamente o que estava em jogo como sabia que a sua vida não era má. Só não tinha a chama que o incendiara nos últimos tempos. O facto é que queria mais da vida e de uma relação do que a normalidade. Nem sequer sabia bem o que era a normalidade. Sabia que estava sendo derrotado pela rotina, sabia que não investiam em si nesta vida como ela o fazia na outra. Achou-se pensando que das duas uma: ou tinha a vida certa com as pessoas erradas ou estava vivendo a vida errada com as pessoas certas. Sobressaltou-o uma ideia peregrina de entre as outras que o habitavam de costume: de facto, não havia uma razão para se divorciar. Nada havia que pudesse apontar à sua vida feita das suas opções. Nenhuma desculpa encontraria para justificar uma tal ruptura e consciencializou que não era uma desculpa o que procurava. Isso seria desonesto. O que procurava era a razão intrínseca do seu querer, da sua vontade, para que não fossem só um querer e uma vontade. O que procurava era a Verdade e só a Verdade lhe interessava apresentar a quem precisava comunicar as suas decisões. E essa verdade era toda ela Amor, amar mais, com mais intensidade e dedicação e ser mais amado. A sua verdade era a sintonia percebida e vivida sem mais explicações. A sua verdade era acreditar que a vida deve ser vivida e consumida e amada pelas melhores razões e não somente pelas menos boas. A verdade era o direito a procurar, sempre, a felicidade absoluta.

Pensou demoradamente nos filhos. Curiosamente não se fixou no que poderiam pensar de si mas somente em pequenos pormenores. Nos progressos escolares do mais velho. Nos problemas de asma do mais novo. Jurou de si para consigo que seria um pai presente, que os acompanharia sempre e, por entre as turtuosas e lúcidas razões que o levavam a pensar que tudo em torno dos filhos apontava para caminhos que não o da ruptura, não deixou de acreditar que, como os pais querem a felicidade dos filhos, os filhos também deverão querer a dos pais. Que aprendessem consigo ao menos isso, a lutar pela felicidade, a ter a coragem de a abraçar se a vida os presentear com a oportunidade.
E foi essa verdade que fez a diferença na confrontação com a sua mulher:
– Porquê? Porquê isto agora? Explica-me… de onde vem essa decisão? O que te faz falta? Que não te dou eu? Que te passou pela cabeça… uma coisa destas, assim, sem razão… és um crápula!
– Porque eu amo outra mulher! Porque quero ter a coragem desse amor…
Naturalmente que ela se debateu, tentou inverter o rumo das decisões dele que lhe faziam cair aos pés um projecto de vida. Contudo, depois da resposta dele, da força da franqueza crua e cruel das palavras, ela percebeu que aquela razão sendo a menos material era a mais palpável, a única plausível no âmbito das suas vidas. E uma honestidade dessas torna-se irrefutável. Sabia, por mulher ser, que nada do que pudesse dizer alteraria o que ele sentia mesmo que alterasse o que ele pensava. Obrigá-lo a ficar não mudaria o estado das coisas, só o agravaria. Esta mulher que conhecemos pouco porque temos tido mais olhos para a outra é mãe, quer preservar os seus filhos, quer salvar a luz que trouxe ao mundo e preservaria o homem e o amor que tem por ele se pudesse fazê-lo. Se pudesse disputá-lo num campo onde brilhasse, ainda que trémula, qualquer centelha de esperança. O campo para onde ele levara a argumentação estava fora da sua capacidade de influência. Ela sabia que podia conquistá-lo no desejo, no sexo, no companheirismo, no seu amor por ele, mas não podia fazê-lo no amor dele por outra, sobretudo assumido, assim, claro e contundente. Percebeu-lhe a linha honesta e franca na abordagem e foi com a mesma franqueza e com a mesma honestidade que lhe respondeu:
– Quanto a isso nada posso fazer. Lamento que não tenhas pensado nessa possibilidade antes de te casar. Lamento que tudo tenha acontecido depois de dois filhos, tantos anos partilhados, tantas coisas boas e más, que as más não são menos valiosas do que as boas… lamento, mas não posso mais do que isso. Vai à tua vida, sê feliz. Não te vou facilitar o processo, nem a vida. Sabes isso?
– Sei, claro. Acusa-me do que quiseres. O que quer que seja devo tê-lo na consciência!

Até nisto ele a desarmara. Nem uma contrariedade. Nem quero isto ou aquilo, ou os miúdos assim ou assado… só a força serena de saber para onde ia. A mulher dele invejou-o. Inveja-se sempre uma pessoa que sabe de forma segura e inabalável o que quer e para onde vai. Estas pessoas não se contrariam, pensou, estas pessoas vêem-se passar…
Ele não está feliz mas está aliviado. E congratula-se por ter tomado uma decisão. Não tanto pela decisão em si porque era o que intimamente desejava, mas porque ela significava assumir as rédeas e o comando da sua vida. Há tanto tempo não sentia esta brisa livre passar-lhe pela face. A brisa de ter a liberdade de aprisionar-se no amor da mulher que verdadeiramente ama. A brisa que nos corta, fria, a ilusão do conforto e nos faz sentir confortáveis com o desconforto. Conhecia bem os problemas que o esperavam no processo de divórcio, ou talvez não, mas antecipava-os e tomara uma primeira decisão enquanto senhor e timoneiro da vulnerável nau do seu destino: não levaria nenhum destes problemas para a sua nova relação. Não lhe diria nada a ela enquanto não fosse completamente livre para dar-se por inteiro, entregar-se a quem o quer e espera, com a mente livre, o corpo preparado, e a vida desobstruída… Afinal de contas, quem esperou quinze anos, espera mais uns meses. A Fénix prepara-se para renascer!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVII)

Noite Fria (XVII)

Vertendo-se com frequência e facilidade as palavras em sentimentos, o que este homem mais sente é NÃO. Não à impossibilidade de um amor que o despertara para a vida. Não ao fim das palavras entre os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Não à forma absurda como se interrompeu uma noite de amor. Não à forma lúcida e racional com que ela pusera um fim ao que parecia não ter fim. Não.

E os dias foram-se sucedendo e com eles foi crescendo esta revolta surda e amordaçada de quem quer gritar um amor e tem de o calar. À medida que os dias passavam e com eles as pequenas coisas e os pequenos gestos que os preenchem se acumulavam foi desdenhando cada um deles, dos gestos e dos dias. Negou de si para consigo a aceitação daquela decisão. Planeou vezes sem conta falar com ela, fazer-lhe juras de amor, prometer-lhe uma vida, abdicar de tudo e ser só seu. Planeou. Mas não executou. Sempre que estas ideias lhe ocorriam seguia-se um sentimento de crime e impunidade se abandonasse a sua família, aquela que construíu com as suas próprias mãos e os gestos delas. Após a negação da morte daquele amor e daquela relação de entendimento e sintonia, veio um tempo em que decidiu aceitar que haviam na sua vida duas mulheres, duas paixões, duas dedicações que se lhe tinham atravessado no caminho em alturas distintas do seu curso. E constatou. Constatou as duas mulheres que amava, os seus odores perfumados distintos e insubstituíveis, os seus timbres de voz marcando presenças e tonalidades diferentes nos dias, as suas peles suaves, os seus olhares, os sorrisos, as roupas, as palavras, as cumplicidades e o calor terno dos lábios de ambas. Aceitou que tinha uma só vida mas que nessa vida haviam duas mulheres. Não se substituíam, nem tão pouco uma poderia ocupar o lugar da outra. As duas tinham um espaço próprio na sua alma e no seu peito.

Acontece que o tempo tem um efeito domador das vontades nos homens. E a distância é um bálsamo para a ausência. E ela, lá longe, guardava consigo as palavras que agora não trocava com ele. E ele percebeu. Percebeu e aceitou. À medida que foi retomando as rotinas desta vida aqui presente, aquele que havia sido um amor intenso e fulgurante começou a constituir-se bruma e névoa da memória. Ao cabo de uns meses, a custo de dor, que é pior do que cortar um membro isto de calar um amor, foi aceitando. Aceitou a distância. Aceitou a decisão dela. Nunca a compreendeu exactamente. Para ele, ter-se-ia reatado o caminho do amor e ter-se-ia feito um hino ao amor e à glória da entrega. Ele amaria lá e cá. Seria capaz de abarcar no mesmo peito dois amores diferentes. Mas soube aceitar. Soube respeitar a vulnerabilidade dela, compreendeu o seu ponto de vista e a sua atitude e amou-a mais por isso. E, ao mesmo tempo, foi reamando quem o amava nesta vida. Nunca se decidiu verdadeiramente por uma delas, das mulheres e das vidas com elas, mas a presença duma e a ausência da outra apagavam a ausente e reacendiam a presente.

Hoje, neste dia de sol promissor, decidiu oferecer-se um café numa esplanada onde estão as gentes contemplando o tempo que passa, sentando-se na tranquilidade da tarde e pensando que o Céu bem podia ser assim. E está neste passar dos tempos limpando os pensamentos excedentes do cérebro bem como os contactos inúteis do telemóvel quando redescobre uma mensagem: “Amo-te incondicionalmente e para sempre!” Ficou pensando que para sempre era um valor extremado e absoluto como o era também incondicionalmente. E ele que pensara que havia nas razões dela para o abandonar toda uma lógica, toda uma gestão de sentimentos, todo um sentido ético e moral, sobressaltou-se pensando que poderia ter-se tratado, só e sem mais, de um sacrifício na impossibilidade de uma realização. Ela tinha, como todas as mulheres, um apuradíssimo sentido de posse e preferia não ter aquele homem para si em medida nenhuma do que partilhá-lo. Esta hipótese acordou-lhe a imensidão do gesto dela. A grandiosidade do seu amor. O tempo que levara a perceber isto…

E, súbito, como se a sua mente tivesse escolhido aquela tarde de esplanada e café forte à luz de uma promessa solarenga para as revelações interiores no encontro de si em si, percebeu que ainda não tinha feito nada. Limitara-se a esperar que uma das suas vidas sucumbisse à outra. Não tinha havido da sua parte um gesto de coragem, uma decisão, um agarrar da vida. As mulheres que o rodeavam debatiam-se por si mais do que ele próprio. Constatou em nome da sua dignidade que a vida não consiste em esperar que a vida aconteça mas é, antes, determinada pelas nossas opções e actos. Havia pensado muita vez nas consequências dos seus actos em terceiros e deixara-se condicionar por isso. Faltava pensar em si próprio. No que queria. Convencera-se de que a lógica dela para o rejeitar era válida porque se acomodara e não se dera ao trabalho de perscrutar a sua própria lógica.

Tinha numa mão uma vida de partilha construída a dois, depois a três e por fim a quatro, uma família. E também uma rotina e muitos cansaços. Tinha na outra a promessa de um amor puro e dedicado, de uma força, de uma companhia. Não podia continuar a ignorar que havia duas vidas que o disputavam, nem podia continuar a adiar optar por uma delas.

Quando se levantou da esplanda e deixou umas moedas jazendo à volta da chávena do café e encarou a luz promissora da manhã, já sabia no seu íntimo o que ia fazer mesmo que a decisão ainda não tivesse chegado à superfície.