Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XI)

Noite Fria (XI)

Ela tem o corpo delgado desnudado das roupas e dos preconceitos. Está deitada olhando o seu amante reclinado sobre si. Ele está deitado de lado com uma perna encolhida fazendo um triângulo. Essa perna assenta no ventre dela. Ele tem uma mão suportando a cabeça e o cotovelo fincado no colchão. Olha-a nos olhos. A mão que tem livre acaricia-lhe, despudorada, a seda do sexo. Vai-lhe beijando as faces e os seios e o corpo todo. E está nesta dedicação de gestos e ternuras que os amantes trocam, contemplando o inimitável sorriso dela quando ouve ao fundo uma voz da outra vida:
– Vais acordar ou não? Olha que te atrasas!
Abre os olhos, sobressaltado, e exclama entre dentes ensonados: “estava a sonhar com ela!”
– Estavas o quê? A sonhar com quem?
– Nada, nada. Estava a sonhar e acordei sobressaltado. Acho que era com a minha mãe.
Mentiu. De novo, como já lhe acontecera antes, se apercebeu da proximidade daquelas vidas, da impossibilidade de ambas serem vividas num mesmo momento por um mesmo homem.

Não queria deixar arrefecer aquele milagre de amor. Ela trabalhava longe, é certo, mas este amor que lhe invade o peito e a mente não conhece essas barreiras que atropelam os outros humanos. Pôs-se ao caminho, articulou uma desculpa para não regressar cedo. Algo relacionado com o trabalho. Está de frente para o local de trabalho dela. Um imponente edifício público. Agarra no telemóvel e liga.

– Estou?
– Sim, sou eu…
– Que surpresa agradável. Tudo bem contigo?
– Tudo. desde que esteja a falar contigo, está tudo bem. Olha, vais almoçar onde?
– Sei lá, aqui perto do meu trabalho. Estou muito cansada hoje. Tem sido um dia terrível. E tu, onde estás?
– Aqui!
– Aqui? Aqui, onde?
– À porta do teu trabalho. Hoje pensei fazer-te uma surpresa… E as flores? Devias ver as flores que aqui tenho… Enfim, pensei que podíamos almoçar num local tranquilo, só os dois…
Fez-se um pequeno silêncio enquanto ela se beliscava a ver se acreditava. Foi um pouco longo, daí que ele tenha retomado:
– Sim? Ainda aí estás? Abusei? Não podes?
– Calma, calma… Estou aqui. Não abusaste. Posso e amei a tua surpresa. Acho que nem acredito que estás aí fora…


À saida do local de trabalho dela há uma escadaria imensa que tem uma vista ampla sobre a paisagem urbana circundante. Normalmente, quando acaba um turno e conquista o direito de respirar a rua, costuma ficar uns minutinhos parada, contemplando as gentes que passam lá em baixo, na rua, imaginando-lhes as vidas. Ali vai um pai de três filhos, aquela é professora e o dia correu-lhe bem, aquela vem de visitar uma tia distante, aquele acabou de fazer amor com uma senhora viúva que gosta de dizer às vizinhas, entre dentes, que ele é seu amante. E fica desfiando este rosário de vidas até que encontra coragem para ser mais uma vida entre as outras e desce a escada. Hoje, é diferente. Hoje a sua vida não é uma vida. É a vida. Hoje sabe ao que vai. Pára no alto das escadas a agradecer o banho de luz, olha o horizonte e fica vendo o homem lá em baixo que tem os crisântemos na mão. Parece um adolescente sorrindo ao futuro, crédulo de si, incrédulo da fortuna, esperando que ela surja para a confirmar.

Hoje demorou-se menos tempo no cimo da escadaria. Desceu-a correndo e saltitando até se enroscar nos braços dele. Beijaram-se longamente. Ela entregando-se totalmente ao homem que a recebe. Ele recebendo-a toda nos seus braços como um prémio de vida! Não quis saber, naquele momento, da outra vida. Não temeu ser visto. Quase o desejou, até! Tinham terminado o beijo, sentiam ainda nos lábios, os lábios um do outro quando começaram de novo a amar-se com as palavras.

– Toma, são para ti. Entrei numa florista e comprei as mais bonitas que lá havia.
– Sabes que flores são essas?
– Como assim? São flores, são coloridas, são as mais bonitas que encontrei… Porquê? As flores definem-se? Isto são mais do que flores? São mais do que o amor que te tenho?
– Não, tens razão! Não interessam para nada os rótulos que as pessoas colocam à vida desde que seja vivida no amor e na entrega que nos temos. Nem sabes como estou feliz. É uma surpresa formidável. Desejei tanto ver-te hoje e quis Deus ou o destino que isso acontecesse… Tu adivinhas-me!
– Eu completo-me contigo. E sendo tu a minha completude, eu terei de ser a tua. É natural, por isso, que conversemos para além das palavras. Que a sintonia emane do amor, mais do que das palavras!
– É tão bom ouvir-te! Poucas vezes na vida me senti tão feliz, tão mulher, tão amada…
– Sim…
– E desejada. Eu sei que me desejas. Sinto-o. Quero mergulhar-te nos olhos e dizer-te, olhando-te, que também te desejo. Anseio esse momento… combinemo-lo.

Combinaram-no. Jantariam juntos na semana seguinte e nenhum voltaria à casa onde normalmente fica e a que chama sua… Dos pormenores encarregou-se ele. Quando o dia combinado acordou, julgaram ambos que tinham renascido para a vida e declararam-se viver aquele dia como se fosse o primeiro…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (X)

Noite Fria (X)

– Olá!
– Olá!
– Como estás?
– Bem, e tu?
– Amo-te perdidamente, loucamente. Desculpa a invasão das palavras.
– Essas palavras são minhas também. Só quero a tua companhia, sempre. A toda a hora recordo o nosso passeio e…
– O nosso beijo! Significou o mesmo para ti que para mim? Sentiste-o com a mesma intensidade?
– Não sei bem se consigo responder-te porque não sei o que significou para ti. Para mim, foi a vida inteira num minuto… enfim, um pouco mais que um minuto!
– Exacto. A vida podia ter acabado aí. Aliás, para mim está interrompida desde esse momento.
– Tens razão. És uma pessoa maravilhosa para mim… quero-te muito por isso, também. Acho que nunca ninguém me valorizou como tu, me tratou como tu. Ao pé de ti tudo faz sentido. Tudo é harmonia.
– Ao pé de ti é que a vida vale a pena. És a razão do meu viver, do meu pensar. És o meu sopro de vida.
– Ainda bem. Senti alguma insegurança. Pensei que fosse só comigo. Que tudo se passasse só na minha cabeça.
– Não. Passa-se tudo na minha também… O mesmo desejo, a mesma perdição e… estava a pensar…
– Temos de fazer amor…
– Sim, claro. Mais uma vez, nem precisaria de falar. Mais uma vez leste-me o pensamento.
– Quero que saibas algo a esse respeito…
– Sim…
– Para mim não é uma questão de matéria, de corpo, de sexo… é, assim, como se fosse o completar de um ciclo.
– Claro que sim. Sexo teria sido há quinze anos. Se o que quer que seja que sentimos resistiu quinze anos não pode ser só sexo. O sexo é efémero. Isto não. Não precisavas dizer isso. Para mim é claro que assim seja. Nem podia ser de outra forma.
– Sim, mas precisei dizer para clarificar. Ainda bem que já era claro para ti.
– Amo-te.
– Amo-te.
– Combinamos?
– Não. Deixa acontecer. Entre nós tudo tem acontecido com tanta naturalidade. Não forcemos. Tenho a certeza de que o Amor, o do corpo, acontecerá entre nós como o das palavras. Surgindo com naturalidade. E tenho a certeza de outra coisa…
– Sim… não me suspendas, diz logo… de que tens tu a certeza?
– Tenho a certeza de que será harmonioso, natural, profundamente sensual e muito intenso. Será o momento mais maravilhoso das nossas vidas.
– Também tenho a certeza disso…
– Sabes, estou tão feliz!
– Eu também. Nem acredito em tanta felicidade.
– Está tudo tão bonito. Estou tão bem comigo. Até sinto que esta conversa podia acabar aqui.
– Estava a pensar isso.
– Deixa-me só dizer-te mais uma vez que te amo muito.
– Também de amo muito.
– Até ao encontro das nossas vidas.
– Até…

Nunca se soube quem disse o quê. O importante nunca foi quem disse mas o que foi dito.
Quando desligaram foram amar-se na memória das palavras trocadas. Foram eternizar na alma o momento que acabaram de protagonizar e lhes marcou o coração a sentir de fogo.

Ela pensou que nunca desejara ninguém tão ardentemente.
Ele pensou que a surpreenderia no dia seguinte…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (IX)

Noite Fria (IX)

Há uma palavra para descrever o seu estado de espírito: encantamento.
Sentia-se renascido com a libertação daquele beijo juvenil, há quinze anos reprimido.

Ao contrário do que vem sendo costume nestas páginas, não é noite nem está frio. Chamando frio àquele tolhimento que se apodera de nós em Novembro e só parte na Primavera. Brilha um agradável sol de Inverno que conforta a alma e aquece o corpo. Vemo-lo caminhar pela rua, passo firme e apressado. Não tem pressa. É uma energia superior que o move. Enverga o fato e o sobretudo e a gravata com orgulho e um sorriso ilumina-lhe a face. De quando em vez dá umas corridinhas, pequenos saltos enquanto estica a mão para dar uma palmada numa folha esquecida de uma árvore urbana. Apetece-lhe falar com as pessoas que cruza na rua e chega mesmo a saudar algumas. Hoje, vê perfeição na obra do Senhor e encontra graça nas crianças, nos jovens, nos adultos e nos velhinhos. Todas as mulheres são belas e nenhuma o atrai. Conduz depressa enquanto ouve música alto. Muito alto. Abre o vidro do carro e deixa-se invadir pelo fresco do ar. Canta. No trabalho resolve os problemas insolúveis. E os outros também. Produz muito com alegria, cantarolando, sorrindo e, sobretudo, não se cansa.

Não pensa no beijo senão quando está sozinho. Aí, tenta lembrar-se do calor dos lábios dela, do toque húmido e aveludado, tenta lembrar-se por onde a abraçava e tenta viver tudo de novo… outra vez. Guarda-lhe os gestos, o sorriso e o tom da voz como tesouros preciosos. Este enlevo tem-lhe mudado o semblante e a atitude. E do lado de lá da vida isso foi notado e assinalado. Só então se apercebeu que aquilo que vinha assumindo como vidas separadas era uma só. Apercebeu-se, tragicamente, de que a divisão que fizera de si para consigo no sentir, no pensar, no agir, no estar, aquela coisa de aqui sou eu, ali sou ele, era uma mentira que a sua impotência, que a sua pequenez, que a sua humana limitação tinha inventado para almejar a ícara felicidade de ser vários em vidas diversas, numa Terra só! Pela primeira vez desde o telefonema que o ressuscitou se sentiu verdadeiramente, irremediavelmente, dividido. Bastou que alguém na outra vida tivesse pensado que viviam nela as razões da felicidade que lhe transparecia no rosto. Bastou que transparecesse lá a felicidade daqui.

Tentou percerber. Tentou perceber-se. Tentou recriminar-se, conter-se. Não conseguiu. É poderosa, a paixão. Tanto, quanto efémera. Arrasa, queima e destrói na ilusão e já cá não está na hora da reconstrução. Procurou as lógicas razões na certeza de que, por aí, encontraria uma solução que apaziguasse o peito e corrigisse o curso da acção. As razões encontradas apontaram-no para a outra vida, para as camadas de dedicação, carinho e compromisso que vinha acumulando há anos. Apontavam para a natural confirmação de uma vida que construíra. Encontrou nessa conclusão, arrancada à mais genuína honestidade que habitava o seu ser, as naturais razões para esquecer o telefonema, as mensagens, as conversas no pc, o beijo e entregar-se ao que sempre se tinha entregado… Mas nesse pensamento houve a interior, subtil, quase secreta alusão ao beijo… Lá no fundo da alma, no côncavo do peito, uma luz brilhou, algo aqueceu e o seu coração, quase moribundo de razão, recomeçou a bater devagarinho e daí a pouco estava de novo cavalgando memórias e emoções e, mais grave, as fronteiras da vida que ainda agora discernia tão claramente estavam de novo esfumando-se na poeira levantada por aquele cavalgar apaixonado do peito. A uma, queria-a porque a descobrira. À outra, queria-a porque fora descoberto por ela.

Este homem que aqui vemos sentado à mesa rectangular de uma reunião que não vai acabar tão depressa ainda não se percebeu mas já se decidiu. Decidiu que prefere arrepender-se de ter vivido erradamente do que de não ter vivido. Decidiu que não conhece por onde o levará a estrada da vida em que está mas quer caminhá-la. Decidiu que Deus não pode dar-lhe duas vidas maravilhosas e obrigá-lo a viver uma só. Decidiu que não sabe muito bem o que lhe reserva o futuro mas quer ir lá ver. Quer afastar a imensa neblina que o impede de ver. E quer fazê-lo vivendo.

Este homem que aqui vemos não é um homem de ficar à espera. Levantou-se do seu lugar. Abandonou a sala. Tirou o telemóvel do bolso e marcou o número dela. Leva-o ao ouvido enquanto coloca os olhos no chão onde risca umas ovais imaginárias com a ponta do sapato. Está a chamar…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (VIII)

Noite Fria (VIII)

Vários dias tinham passado desde que os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras haviam caminhado juntos pela cidade e trocado um beijo apaixonado num banco de jardim e, contudo, a ela parecia-lhe que tinha sido mesmo agora. Juraria que trazia ainda o cheiro dele na sua roupa, o som das suas palavras ainda lhe ecoava na cabeça… “Quero fazer amor contigo!“


Acreditando que as pessoas se definem pelos seus rituais e pelas suas opções, é importante referir-se que ela nunca fora uma pessoa de centros comerciais. O seu mundo e o equilíbrio dele exigiam-lhe uma outra tranquilidade. Para poder viver tumultuos e enfrentá-los e superá-los, a sua vida tinha de ser um contínuo de paz nem que para tal abdicasse. E abdicava muitas vezes de muitas coisas, opções, propostas, trabalhos, promessas, ofertas, passeios, noitadas… abdicava porque precisava da força interior de estar consigo em paz. Hoje, contudo, procurara um centro comercial. Queria abafar o eco das palavras dele no ruído das gentes. Queria olhar para as pessoas e pensar que se cruzavam com ela outras mulheres apaixonadas a quem tinham prometido amor e queria ver-lhes as faces, reparar se sorriam ou estavam apreensivas, tentar perceber se aceitariam dar o passo ou recuariam diante do altar da entrega total. Chegou mesmo a desejar que uma dessas existências anónimas lhe lesse a alma e viesse partilhar consigo uma experiência semelhante: “Propuseram-lhe amor, não foi? Ele é perfeito, não é? Pois, já percebi, tem outra vida. Oiça, não pense em termos de vidas, nem na vida dos outros, a outra vida dele é dele não é sua. Viva a sua vida! E ame-o, ame-o como nunca amou nem desejou amar!” Queria, hoje, estar longe de si, do seu mundo em circuito fechado e queria perder-se entre as gentes como se fosse só mais uma pessoa normal que passa ou vagueia num centro comercial. Parou em frente de uma montra de roupas, com manequins modernaços, com as feições e as formas do corpo perfeitamente esculpidas e pensou que alguns daqueles bonecos eram obras de arte. Ficou olhando a exposição, a conjugação das cores, os botins que davam com o casaco e a carteira. Este ano era o lilás. Ficou olhando por fora mas por dentro não os via. Por dentro, na sua mente, no seu coração, no sangue que lhe corria nas veias e nas artérias, no seu corpo inteiro de mulher inteira não cabia mais nada. Nem sapatos, nem casacos, nem acessórios, nada. Só um imenso eco que lhe sobressaltava o coração a todo instante como se se tivesse esquecido de algo muito importante e lhe viesse de repente a lembrança à cabeça e ao corpo: “Quero fazer amor contigo!“ – Enlevada nesta entrega e nesta situação nova que a vida lhe tinha criado deu consigo a percorrer umas ruas mais estreitinhas e labirínticas do pensamento. Estava apaixonada, devotamente apaixonada, não sentia, de há uns dias para cá, outra coisa nos lábios e na boca que não fosse o toque húmido e quente dele, não desejava nada, tão ardentemente, como estar ao seu lado, conversar as suas conversas, rir as suas gargalhadas, franzir o sobrolho com as suas preocupações. Sabia que havia outra vida na vida dele. Mas não tinha, ainda agora, imaginado uma transeunte dizendo-lhe que essa era só dele? E o que ela queria era viver a sua própria vida, amar o seu amor, morrer a sua morte porque tudo isto é intransmissível. Sabia que não podia exigir-lhe nada. Isso mesmo haviam acertado entre si até àquele beijo e àquela frase. Sabia que os momentos passados em conjunto eram de uma harmonia impensável, quase cinematográfica, a lembrar Humphrey Bogart e Lauren Bacall na tela. Era quase como se ela soubesse sempre o que ele ia dizer ou fazer e ele o fizesse ou dissesse e mesmo assim a surpreendesse. Talvez ela não soubesse mas desejasse intensamente. E ele era o homem de realizar os seus desejos da alma.

Estava perdida nesta trama prazenteira de amá-lo à distância quando percebeu que havia um equívoco na maneira como se estava a comportar consigo mesma. A forma como se sentiu envolvida pela presença dele volvidos todos estes anos, a forma como se sentiu surpreendida por aquele desejo que era também o seu, ele apenas tinha tido a coragem de o trazer à luz do dia num banco de jardim, estavam a criar de si para consigo a exigência de uma decisão. O próximo passo. Mas, a verdade é que ele não perguntara se ela queria fazer amor consigo: “Queres fazer amor comigo?“. Ele exclamara, das entranhas corajosas, do desespero de não poder estar mais quinze anos sufocando as palavras, que queria fazer amor com ela: “Quero fazer amor contigo!“.

Decidiu não decidir. Decidiu deixar-se amar se o amor viesse ter consigo. Decidiu deixar-se tomar pelo seu corpo como já tinha sido tomada pelas palavras se ele viesse a tanto. Se ele cruzasse a fronteira da vida que os separava, ela ama-lo-ia com a alma e o corpo das formas e nas nuance todas que conhecia!

Estava, assim, de frente para a última moda de sapatos enfileirados alternando com botas ousadas, entretida, amando-o e esperando que ele a amasse, quando no universo complexo e rico da sua mala o telemóvel tocou. Vasculhou por entre a profusão de objectos, todos com uma utilidade e com um momento para serem usados, até que viu a luz do visor piscando. Agarrou o aparelho, trouxe-o à luz artificial do centro comercial e viu quem estava batendo à porta da sua vida. Era ele.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (VII)

Noite Fria (VII)

Em boa verdade não foi ele que surpreendeu a vida. Foi a vida que o surpreendeu a ele.

José António tem a porta do seu quarto aberta. Não reage. Não sabe como. Nunca se preparou para uma situação assim porque nunca se imaginou nela em nenhum dos lados da fronteira. O único sentimento que lhe atravessa a mente e o corpo é a ausência de tudo. Sente-se suspenso da vida, como se a realidade se tivesse, de repente, alheado de si. Ainda lhe rondou uma vertigem pela cabeça, um enevoar de vista mas durou pouco. O quadro era demasiado vivo, demasiado denso e intenso para admitir vertigens.

Os actores da sua desgraça não o vêem, não o podem ouvir porque se queda mudo e, isso sim, espantou-o, não o pressentem. Ofende-o aquele à-vontade, aquela desplicência. Maria de Fátima tem as costas coladas à cama e os braços abertos repuxando os lençóis. O homem deita-se sobre o seu corpo alvo, pontilhado aqui e ali de pequenos sinais, e entrega-se, laborioso, libidinoso, a um repertório de carícias que parece satisfazer Maria de Fátima. Um suor brilhante salpica-lhe a pele enquanto acaricia o corpo da mulher que é hoje sua, sendo de outro. Este homem que lhe rouba a vida tem as costas voltadas para si, por isso não vê José António e retira à amante o campo de visão. De resto, mesmo que lho não retirasse pouco importaria. Ela não está aqui, tendo aqui o corpo. Cerra os dentes e fecha os olhos e tenta absorver a vida que lhe entregam.

Num segundo, como que acordando do torpor da funesta surpresa, José António desperta para os sentimentos que o tomam e lhe ocupam as ideias todas: raiva, ódio, desespero, desilusão, impotência, ofensa. Uma profunda e silenciosa ofensa. Superada a turba de sentimentos que o assolou num repente, começam a afastar-se uns dos outros, José António começa a diferenciá-los e percebe que há um mais forte que todos os outros. Invadiu-lhe a mente o mais improvável de todos: a culpa!
Algo lhe dizia que também ele havia sido pintor daquele quadro, naquela obra existia também acção sua, activa ou passiva, por excesso de atenção ou por falta dela. Enquanto o coração tinha batido mais forte na erupção de ideias que acabara de dar-se pensou que tudo aquilo era uma imensa imoralidade, um pecado inominável. Agora já não está pensando assim. Pensa que aquela mulher deseja aquele homem e que aquele homem possui aquela mulher por vontade e consentimento de ambos. Gritar, bater com portas, esmurrar, esfaquear, balear, nada disso apagará o que está feito porque feito está. Nada disso apagará a vida que ali acontece. Não é a infidelidade em si que o magoa, é não ter percebido onde falhou quando falhava, é não ter lido os sinais, são as suas insuficiências que hão-de, que têm, de estar nalguma génese do que agora presencia. Pensou, então, num repente, com um temor imenso que o pressentissem contemplando-os, que a sua vida com Maria de Fátima dependia de ser visto vendo-os. Pensou que, em meio desta situação precária, alguém tinha de ser nobre e segurar com a firmeza das suas convicções a família que ainda era a sua. Por ela, pelos filhos e por si mesmo, iria digerir sozinho este nó que se lhe formava na garganta. Iria viver e contemplar Maria de Fátima com outros olhos, mais atentos, mais despertos, iria buscar em si as falhas e apagá-las da sua existência… Era o seu contributo. O seu sofrimento silenciado resgatando a família.

José António não fechou a porta e Maria de Fátima, ao passar para a casa-de-banho mais tarde, haveria de jurar de si para consigo que a tinha fechado, e saíu silencioso e abatido. Colou os olhos no chão como que envergonhado da sua existência e da sua distracção, reentrou no casaco e saíu para rua mergulhando desprotegido na chuva à espera de que a água dos céus lhe lavasse a alma. Só voltaria à hora a que o esperavam.


Abriu o rosto aos céus e deixou-se banhar pela água fria. Esteve assim, esperando acordar. Quando se des-sonhou, encolheu os ombros dentro do casaco, devolveu os olhos ao chão e deambulou pelas ruas e pelas ideias. Andou assim, distraindo-se de si, por momentos extensos e passadas curtas, molhadas, pesadas, arrastando a realidade agrilhoada a si. A palavra divórcio andou ali a tentá-lo mas de que teria servido, então o sacrifício do silêncio? E seria isso uma solução ou uma fuga à solução? Estava tentando convencer-se de que aquela saída não era uma saída quando a consciência o lembrou da única verdade que não ousara ainda pensar: não tinha coragem para divorciar-se. Nunca fora um homem de rupturas. Tinha a covardia do amor, do hábito e dos rituais com Maria de Fátima. Crescera ansiando uma família. Uma família construíra. Não seria ele o agente da sua destruição.

Admitiu, com coragem, que algo estava profundamente errado para ter chegado àquela noite deambulante, chuvosa e fria. Acreditou ter prescrutado as razões na origem do mal. Ergueu os ombros como que reagindo à adversidade, recordou os filhos rindo e brincando à sua volta, rumou em passada firme na direcção convicta do seu lar.

José António havia tomado uma decisão importante na sua vida…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (VI)

Noite Fria (VI)

Paira na repartição de finanças um sussuro de trabalho que a transforma numa espécie de colmeia em que cada abelha parece andar perdida e só, mas cujo labor contribui para uma arquitectura mais lata. Umas folhas que passam de mão em mão e deixam o som do papel vegueando, quase imperceptível, nos demais. Uns dedos dançando em teclados prostrados diante de monitores infectados pela doença dos papelinhos amarelos. Uns recados que se dão ao ouvido como se fossem segredos não o sendo, evitando só, um tom de voz mais pertubador. Umas passadas que cruzam a sala, uma fotocopiadora, uns telefones, uns carimbos que caem pesados pintando as folhas impressas, um som electrónico anunciando o próximo atendimento. É assim a vida na repartição. Cheia de ruídos mas quase silenciosa pelo tom abafado que se vai colocando em cada um. Acontece, pois, que sendo os homens, homens e as mulheres, mulheres e, como tal, dotados das abençoadas diferenças que os fazem perseguir-se, nem uns nem outros, embora elas tenham mais virtudes na matéria, conseguem em meio de cenários tão complexos e densos como uma repartição de finanças com dois pisos e diversas secretárias por piso, aperceber-se do quadro geral. Veio isto ao caso porque nos tempos modernos criou-se o salutar hábito de apresentar quem tem de ser apresentado e, por isso mesmo, plantam-se em cima das secretárias uns objectos acrílicos com o nome de quem lá está. Ou devia estar. No piso um da repartição, onde se aviam impostos municipais, i erre esses, i erre cês e tudo ao gosto do freguês, há uma secretária, ao fundo da sala, que jaz abandonada. O dito letreiro acrílico apresenta em letras azuis quem lá não está: Maria de Fátima Silva.

Por umas escadas largas de corrimão inox escovado a acrescentar um ar asséptico à impessoalidade do local, sobe-se ao piso dois onde os impostos que se aviam são de outra ordem, sem atendimento ao público, mas em que a azáfama trabalhadeira é a mesma. Na igualdade própria dos open space, as secretárias são todas iguais, como iguais são as cadeiras e os computadores e os dossiês e até mesmo os letreirinhos acrílicos que aqui não fariam sentido porque não há público mas que, por razões de democrática e igualitária distinção, vão morrendo os dias com os nomes de quem se senta por trás daquelas mesas de trabalho. Hoje, sem que ninguém se aperceba da coincidência, o letreiro “Anselmo Oliveira” não usufrui da companhia do próprio. A um canto da sala, passando por uma pequena porta verde em fole, um corredor sossegado e sombrio abre o acesso a diversos escritórios que, pelo recato, deverão ser usados palas chefias. Ao fundo do mesmo, uma janela pequena e perra com vista para as traseiras lúgubres. À esquerda da janela um recanto com uma maquineta de café de que ninguém gosta mas a que ninguém se nega, aproveitando mais a pausa que o café. À direita da janela, percorrendo um recanto de dois metros, estaca-se uma porta de madeira de que só alguns eleitos têm a chave. Anselmo, pelas responsabilidades que detém, é um deles. Lá dentro, acotovelam-se os dossiês em estantes metálicas sepradas pelo tipo de processo e com numeração específica para cada pedaço de vida fiscal que ali se guarda. As estantes estão separadas por não mais do que setenta centímetros, o espaço suficiente para que a humana necessidade de consultar as percentagens de algum contribuinte seja satisfeita. Estas arrecadações são cada vez menos usadas e há até quem diga que vão desaparecer em breve substituídas por outras que levam o mesmo mas mais apertadinho ainda. Os computadores. E é fiando-se no pouco uso do espaço e na quase exclusiva utilização que dele faz Anselmo que os dois funcionários da repartição abandonaram os seus letreiros de acrílico para aqui se encontrarem. Ela, a pretexto do café, ele, de uma qualquer consulta. Ambos perdidos no burburinho e na imensidão do espaço e das gentes. Maria de Fátima sentou-se numa mesinha de poisar e abrir os dossiês, puxou-o para si e envolveu-o com as pernas fincando-lhe os calcanhares nas nádegas. Deitou a cabeça para traz e ele beija-lhe, sôfrego, o pescoço enquanto lhe percorre o corpo com as mãos masculinas e ávidas e tenta manter o vai-e-vem ritmado que a situação exige. Anselmo não é o homem que José António Cruz da Silva surpreendeu em sua casa.

Maria de Fátima não gosta de fazer amor.
Maria de Fátima adora sexo e isso basta-lhe.
Adora o vigor e a pujança dos homens. Adora sentir-lhes o corpo suado e a respiração sôfrega e arfada. Adora acariciar-lhes os corpos e sentir-lhes os pelos por entre os dedos e não vê em nada deste prazer, assim dado e recebido, senão a dádiva e a entrega. Não vê o pecado nem a imoralidade. Nem os percebe. Maria de Fátima não peca. Vive assim a vida como ela lhe vai surgindo, como ela se lhe vai oferecendo e tira partido da generosidade com que a Natureza lhe presenteou os volumes e as formas.
Transporta consigo um brilho no olhar e uma malandrice no sorrir que anunciam o seu desejo e não sabe, já, quantos homens conheceu. Sabe só que nunca se arrependeu. Sabe que eles a desejam, que a devoram com o olhar, que a tentam com palavras e mãos que se desprendem dos ombros para as costas e por estas abaixo lhe tocam o anunciar das nádegas firmes: “Muito obrigado pelo esclarecimento, colega!“. Ela a responder com um risinho, um olhar cúmplice, e tudo a acabar nos mesmos gestos sempre diferentes, sempre renovados conforme os actores e os cenários. Na arrecadação da repartição de finanças. No carro. Num quarto de hotel. Num apartamento ou, podendo ser, em sua casa, porque não?

Sem se poder dizer que tenha nascido para mãe, Maria de Fátima cumpre, com dedicação e desvelo, as maternais obrigações e cuida dos filhos o melhor que sabe e pode. Dá-lhes o seu amor, a sua atenção e trata-os como se fossem o centro da sua vida. Mas não são. Ela sabe-o e não se mente isso a si mesma. O pequeno Marco e a mais pequenina Alice têm nos braços largos e macios da mãe bem como nos seus seios generosos e cálidos o amparo de uma vida e não vá já o leitor fazendo juízos errados pelo que sabe de Maria de Fátima porque estes filhos não trocariam sua mãe por nenhuma outra que se lhes oferecesse fossem quais fossem as virtudes que carregasse na alma ou no ventre.

Maria de Fátima ama verdadeiramente, naquilo que é a sua verdade, a mais pura que encontra em si, o seu marido, José António. Não se arrependeu nunca de ter casado com ele, o melhor e mais afectuoso dos maridos, o mais dedicado e cuidadoso dos pais. Só lamenta que José António não seja tão bom amante como é marido. Que saiba tão bem fazer amor mas tenha tão pouco jeito para o sexo. O Amor dá trabalho, exige concentração, a entrega da alma e do sentir de dentro do corpo. No sexo nada se entrega a não ser o corpo por fora, instrumento de prazer e fruição, acto miraculoso de dar e receber pela pele, sem mais nada porque nada mais é preciso. Maria de Fátima não confunde o marido com os outros. A ele dedica-lhe tudo o que é e sabe. Com os outros abandona o corpo aos instintos do momento. Ele fica. É a trave da casa. Os outros passam. E nesta curiosa arrumação da vida, Maria de Fátima sabe que não é fiel ao marido mas acredita que é fiel à família! Por vezes dá consigo a pensar que os homens é que costumam ser assim. Pelo menos estava escrito numa revista esquecida na sala de estar do dentista. Por vezes crê-se pecadora, imerecidamente casada com um homem que merece mais e melhor do que ela consegue ser. Depois, acorda em si a pergunta que consigo anda desde a primeira vez que decidiu deitar-se com um homem: “Se eu não fizer isto nesta vida, quando o farei? Para que serve a vida, então? Se isto que agora faço, se este homem que abraço e não é o meu é pecado porque é excesso então pecou Deus primeiro porque me deu para viver vida demasiada!” E entrega-se!

Voltemos à porta que deixámos aberta quando José António chegou a casa e surpreendeu a vida…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (V)

Noite Fria (V)

José António Cruz da Silva é o homem mais feliz do mundo e sabe-o.
Dentro de seis meses estará desempregado e esse será o menor dos seus males.

Como sempre acontece nesta estória, mesmo no seu título, a noite está fria. Cai uma chuva miudinha mas espessa que, atravessada pela luz do candeeiro de iluminação pública plantado à porta da empresa, faz aquele interessante efeito visual que é parecerem estar a precipitar-se do céu gotículas de prata numa imensa correria de ver qual chega primeiro ao chão. José António trabalha nos escritórios. Ofícios, notas de encomenda, pagamentos a fornecedores, faxes, enfim, mantém em funcionamento as veias comunicativas da casa. Contudo, a crise chega a todos e na empresa houve um resizing e entrou-se em lay-off. É curioso como encontramos sempre uma palavra inglesa para as coisas mais desagradáveis. É como se quiséssemos manter a desgraça à distância mesmo quando nos limitamos a referi-la que é coisa de somenos comparada com vivê-la. José António teve sorte. Manteve o posto de trabalho e o horário a tempo inteiro. É no que dá trabalhar com dinheiro. Não se pense, no entanto, que não sofreu consequências. Por via das alterações já aqui referenciadas no melhor inglês que se encontrou, a chuva que se precipita lá fora, iluminada pela luz pública, cai-lhe nas costas. José António teve de preparar e acompanhar o carregamento. Dois camiões enormes entraram na área de cargas e descargas e engoliram as paletes empilhadas sob o imenso telheiro. Desta vez não houve enganos nem nenhuma palete se desprendeu do empilhador e se estatelou na gravidade do chão, nem nemhum operário, com o cansaço, embateu com o empilhador numa resma de paletes e, por isso, o telefonema que José António fizera a Maria de Fátima, sua mulher, ficaria sem efeito. “Sim querida, sou eu. Hoje vêm cá uns espanhóis carregar e tenho empreitada até lá p’rás onze. Não esperes por mim para jantar. Dá um beijo aos meninos. Outro para ti. Até logo… amo-te!“

São nove e meia e vêmo-lo junto do imenso portão de correr, já corrido, ombros encolhidos dentro do casaco de sebo, como que a tentar ficar com menos área exposta à água que Deus dá. Chaves na mão trancando o que fica do lado de dentro, tal confiança mereceu-a com anos de trabalho irrepreensível. Chaves no bolso. Chapéu-de-chuva aberto. Pés ao caminho para percorrer os dez minutos diários de retorno ao lar que é o seu mundo. Como sempre, vai fazendo o balanço ao dia, acertando as contas com as tarefas que o esperam, antecipando os cumprimentos e os abraços que tem para distribuir aos filhos e à mulher, actores quase exclusivos do palco da sua vida.

Hoje, enquanto caminha, apetece-lhe recordar o favor que a Fortuna fez à sua vida. Filho de vidas complicadas, famílias destroçadas pelo álcool e pela separação, José António só veio a ter família quando construiu uma. Estudou, arranjou emprego e fez sempre tudo o que pôde para o conservar. Hoje, enquanto sobe a calçada, agradece esta realidade abençoada de ser pai querido e marido amado. Não avisou, por isso, que chegaria mais cedo. Seria surpresa. Jantariam todos juntos, como de costume, na mesa da cozinha e da felicidade. Marco, de oito anos, à sua esquerda. Alice, que devia ficar à direita, estaria sentada no seu joelho comendo ambos do seu prato. Em frente Maria de Fátima, não para a enfrentar, somente para não perder de vista, por um segundo, a mulher que lhe dera tudo isto. Um pouco de televisão e por fim os rituais de fechar o dia e preparar a jornada seguinte.

Quando entrou em casa não estranhou o silêncio. Os miúdos estariam ainda com a avó. Sentiu a presença de alguém lá em cima, nos quartos. Naturalmente seria Maria de Fátima. Decidiu surpreendê-la antes de ir buscar os miúdos. Se ela quizesse, fariam amor. Enquanto subia as escadas, os sons tornaram-se mais nítidos e aquilo que começara por ser um restolhar parecia-lhe agora um murmurar. Maria de Fátima estaria no banho e cantarolava como tanto gostava de fazer. Mas à medida que vencia o espaço que os separava e os ruídos se tornavavam mais perceptíveis, as justificações que encontrava para os explicar esgotavam-se e a única que ainda sobrava requeria a sua presença e ele não estava lá. Dirigiu-se, tremendo, incrédulo, para a inequívoca fonte dos murmúrios: o seu quarto. Abriu a porta a medo, não fosse a vida cair-lhe aos pés.

A porta está aberta. Maria de Fátima está escancarada e acolhe dentro de si outro homem.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (IV)

Noite Fria (IV)

Seguiram de mão dada, em silêncio, por mais algum tempo. E só a pouco e pouco as palavras foram regressando à vida. Coisas banais, primeiro, depois foram crescendo na conversa as ideias e em pouco tempo falavam entusiasmados do tempo que tinham passado sem se contactar, os porquês, as razões que levaram a vida a ser a vida. Falaram dos seus percursos, sorriram nos detalhes, estiveram sérios nas questões mais graves, disseram parvoíces, comentaram uma fachada e uma velhinha que passava. Foram prosaicos e poéticos. E riram. Ela ria alto, um riso franco e seguro. Ele sorria e contemplava a mulher desta vida. E falaram das diversas vidas. Desta e da outra. Nem as tentaram justificar. Sabiam que se tratava de rios paralelos, sem concorrência, correndo os dois para o mar sem se atravessar. Nesse momento houve silêncios. Ambos sabiam que viriam a atravessar-se ou um secaria. Estava longe, ainda, esse tempo. Sim, estava. Não interessava agora ali. Não era um pensamento para este dia nem para este encontro.
Os seus passos como que os conduziram acompanhando o ritmo da conversa. Foram buscando, por intuição, um espaço agradável para aquele tempo limitado por razões que agora não vêm ao caso, nem acrescentam nada à estória.


E pode dizer-se que os passos dos amantes são sábios. Encontraram um jardim. E um banco nele. Ela anichou-se no peito dele, encostou-lhe a cabeleira farta e encaracolada ao coração. atravesou as pernas por cima das suas e ele aceitou aquele sentar felino de gata no sofá em tarde de frio. Fizeram discursos longos e longos silêncios também. Ele beijou-lhe as mãos e as faces e a testa as vezes todas que quis até não se sentir saciado. Brincaram com as mãos um do outro num enlevo de fim de tarde, trocando calor e cumplicidades e bem poderia dizer-se com a singeleza que o verbo encerra que estiveram namorando na vida onde ainda se podia namorar.
O olhar fixou-se, os olhos brilharam, ela sorriu um sorriso que parou no meio e sem palavras consentiu. Ele percebeu o convite e gentilmente, com um movimento suave de quem acaricia a fragilidade, puxou-a pela cintura e poisou-lhe um beijo nos lábios e sentiu a suavidade da carne de seda e o beijo cresceu na entrega mútua a uma união frágil de viver e forte de amar. A sua respiração era agora uma só, como um só era o seu corpo. Foi um beijo demorado, os lábios e as línguas e as mãos de ambos ficaram conversando, agora com mais argumentos que os do primeiro abraço. Quando o beijo terminou, trocaram vários beijinhos pequeninos como se fossem o eco do primeiro, a pedrinha que vai saltitando em cima da água fazendo círculos mais pequeninos até parar, ou melhor, deixar de caminhar… Enroscaram-se, de novo, felinos e fetais. E ali ficaram, sorvendo os minutos em silêncio num banco de jardim, seu universo provisório de amar.
– Sabes quando foi a primeira vez que nos beijámos? Quero dizer, assim um beijo apaixonado, na boca, nos lábios?
– Não sei, não estou certa. Acho que foi daquela vez no jardim quando me foste ajudar… Ou não… já sei, foi no trabalho…
Tinha já colocado demasiadas possibilidades…
– Não sei, a sério… já lá vão tantos anos, quinze, não é? E sabes que não sou muito boa com os pormenores. Pelo menos a lembrá-los.
Sim, pensou ele, pelo menos a lembrá-los porque a vivê-los és fantástica.
Fez-se um pequeno silêncio. Ela colocou um sorriso inquisidor como que a reclamar a resposta e a conclusão da conversa começada… Se não fosse para a terminar que sentido teria começá-la? Ele percebeu. E estava tão seguro. Tão certo, tão enlevado ainda pelo primeiro beijo que o seu coração de adulto batia como um jovem alazão à solta na lezíria. E revelou.
– Foi ainda agora! O beijo que me deste há momentos foi o primeiro beijo que trocámos. Destes, bem entendido!
– Pois foi.
Ela disse isto como se tivesse sabido sempre a resposta. E sabia.
Estes amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras tinham amado tão intensamente com elas que foi precisa uma ausência de quinze anos para que o corpo reclamasse para si um quinhão daquela cumplicidade. Amaram-se tanto e tão intensamente, conversaram tanto de mãos dadas, trocaram tanta intimidade no olhar, no sorrir e no desenrolar das conversas proibidas que se esqueceram do corpo. Abandonaram-no à porta da vida e viveram e amaram sem espaço nem tempo.

Estavam acariciando as mãos e as palavras, enroscados um no outro, naquela tarde sem fim com banco de jardim quando, súbito, num arranque inesperado de emoção e coragem e quero lá saber quantas vidas tenho, agora estou nesta e vou vivê-la, ele esticou o pescoço como quem vai dizer-lhe um segredo, deixou-lhe, pelo caminho, um beijo na face, e já sem poder olhá-la nos olhos sussurrou tremendo como se tivesse muito frio, como se todo o universo se abrisse a seus pés, com se a luz do fim de tarde se apagasse consumida pelo turbilhão que lhe ia no peito de coragem: “Quero fazer amor contigo!”.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (III)

Noite Fria (III)

A reunião decorria intensa. Os pontos de vista defendiam-se com fervor. Por vezes, as divergências levavam a ironias, sarcasmos e invectivas mais ou menos bem encaixadas, consoante o estofo do atingido. Mas, desta vez, ele não conseguia envolver-se. Havia à sua volta uma redoma de um vidro invisível, como que um escudo daqueles com que na ficção científica se salva a Terra da grande catástrofe. Ele ouvia-os ao longe e, no entanto, estavam todos encerrados na mesma sala. Por diversas vezes tentou envolver-se com a reunião mas estava demasiado envolvido com ela. O que sentia chama-se antecipação, esquadrinhou as palavras na mente e planeou centenas de vezes as coisas que não viria a dizer-lhe. Era hoje. Faltavam poucas horas. Tudo se resumia a um café em conjunto, um encontro fugaz de amigos que reatavam contacto. Não podia mentir a si mesmo. Não era nada disso. Era o momento que tanto imaginara e por que tanto esperara…

Resolveu enviar-lhe uma sms: “só já faltam duas horas e trinta e três minutos!
A resposta foi breve: “Está quase a acabar o sofrimento.“

Ela não soube, nunca, o impacto e o efeito daquelas palavras nele. Havia alguém nesta Terra imensa de desencontros que se encontrara consigo e para quem o tempo da ausência era sofrimento. A falta que tinha desta dedicação. Desta coisa simples que era alguém dizer-lhe “Estás aí, sei que estás aí e para mim isso tem um significado. Estás aí e eu quero estar aí contigo!“. De repente, com a precipitação mental que o caracterizava e a paixão que agora o dominava e submetia, pensou deixar a outra vida e viver só nesta.

Nada havia, contudo, de errado na outra vida. Era uma boa vida. Só não era esta. E, num momento de euforia, atravessou-se-lhe na mente a nuvem negra das limitações com que nascem os humanos. Esta condição estranha que é termos uma coisa maravilhosa, a vida, mas só podermos tê-la uma vez. Irrepetível. Amarrados, inexoravelmente, a cada opção, a cada gesto, sem espaço de erro ou manobra e, paradoxalmente, entregues à mais absoluta ilusão de liberdade. Sacudiu os pensamentos, voltou ao tom de voz dela, ainda ecoando desde o telefonema iniciático. Hoje era dia desta vida. Amanhã, esta vida seria a outra.

Chegou ao local combinado mais cedo. Queria evitar um desencontro. E esteve ali tremendo, escolhendo uma posição de que ela pudesse gostar. Ficou na pior possível. De pé, pernas afastadas, braços cruzados, parecia um segurança de discoteca. Haviam de rir-se disso, quando fosse o tempo de rir.

O dia estava caindo. O sol espalhava-se pela cidade amarelecido da tarde e o calor era pouco mas a luz era irrepetível. Ela anunciou-se ao longe, passo firme como quem sabe exactamente para onde vai querendo ir. O recorte da silhueta contra a luz foi-lhe mostrando um corpo igual ao que conhecera, o mesmo cabelo, o mesmo trejeito de cabeça inclinada para um lado a entornar o sorriso. Notou, com interesse, que ela foi reduzindo o vigor da passada à medida que espaço encurtava entre si. Quando estava já junto a ele, a menos de um metro e as respirações eram audíveis, parou.


E um estranho fenómeno aconteceu. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras, ficaram sem elas! Um olhar no olhar. Um sorriso mútuo, uma contemplação. Um estou aqui, aqui me tens, sou tua. Um estou aqui, aqui me tens, sempre fui teu. Foram as ideias que se comunicaram mas para tanto não houve precisão de palavras. E, estando os corpos presentes, também não foram necessários para mais do que sorrir e olhar. A conversa era agora outra. E as palavras que fossem pronunciadas nada mais seriam que ruído.

Ele estende-lhe as mãos abertas com as palmas para baixo. Ela estende-lhe as mãos com as palmas abertas para cima. Encaixam. Ela percebeu-lhe a força. Ele leu-lhe a gentileza. E abraçaram-se. Ficaram imóveis, de corpos colados, sentindo a verdade daquela presença, cheirando, comunicando com o corpo todo as coisas que estavam suspensas das palavras há tantos anos. Alguns transeuntes estranharam aquelas duas pessoas, ali, de pé, que se não largavam, abraçadas, como se não quisessem falar-se, olhar-se mais… só sentir-se.

Ainda sem palavras, afastaram os corpos, voltaram a olhar-se nos olhos e a sorrir-se nas almas. Deram as mãos e começaram a descer a rua, lado a lado, com o sol a aquecer-lhes as costas e a projectar as suas sombras na calçada.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (II)

Noite Fria (II)

– Olá! eu sou a…
Ela não precisava dizer mais nada.
Não foi só o tom doce da voz que ele reconheceu. Foi a confirmação de um momento que antecipara em sonhos, em pensamentos altos e nos escondidos. Fora um desejo que sufocara. Fora algo que escondera dentro de si até esquecer-se de que o tinha guardado no peito. E aquelas palavras, ainda que poucas, foram suficientes para acordar em si tudo o que adormecera. E assim que ela acabou de pronunciar o seu nome ele estava já falando como se a última vez que tinham trocado palavras não tivesse sido há quinze anos mas somente há quinze minutos. O que houvera fora breve mas intenso, tão intenso, que o tempo não apagara. E tudo se reatou com um “Olá!”.
– Sim, eu sei quem és. Claro que me lembro de ti. Estás com a voz mais segura…
– Obrigada! Passei uns tempos difíceis mas superei. Agora estou bem. Trabalho estável, cabeça limpa. Não tinha o teu número. Calculei que ainda trabalhasses aí. Liguei-te para o trabalho e deram-me o número.
A voz era, como sempre fora, doce, fluida. Tinha um timbre de seda e carinho e no fim de cada palavra, de cada frase, emergia da aparente fragilidade uma força e uma firmeza que sempre constrastaram com o corpo fino e esguio a anunciar vulnerabilidade. Esta mulher não era frágil. Esta mulher já o vencera uma vez.


O dia que prometia pouco e terminava em noite fria estava aquecendo almas e prometendo o mundo. A juvenilidade destes adultos revelou-se nos minutos que se seguiram. Trocaram-se telefones, mails, reavivaram-se momentos passados e cada um foi tenteando o outro, procurando perceber-lhe as intenções, avaliando os estragos do tempo nas promessas de amor. A noite foi longa, ao computador. Frases longas, fotos a avivar a imagem esfumada na mente. O motivo que justificava o contacto bailou na conversa mas quando foi trazido às palavras já interessava pouco. Nenhum acreditou nele e seguiram fazendo o que melhor sabiam: amaram-se com as palavras que nestas coisas do amor, o corpo é mais o pretexto do que o texto. É mais o motivo do que a razão. É dispensável e, contudo, sempre presente. As palavras, essas, ardiam na pele e queimavam por ser ditas. Acariciavam, envolviam de ternura e entendimento o que os corpos nunca suprimiram: a solidão.

Encontrar-se-iam, claro. Como amigos. Amigos sempre foram…

Ela está agora a deitar-se. Encolhe-se, como sempre faz. E o som dos carros lá fora, e as sirenes das ambulâncias intermitentes, e algumas vozes altercadas ao longe, tudo isso é hoje música nocturna a embalar a alma numa noite fria.

Ele está agora a deitar-se. Cumpre os rituais de sempre mas há nesta noite fria algo diferente: hoje o coração não lhe cabe no peito. A verdade não o convence. Belisca-se. Sim, está nas nuvens da terra! Puxa um pouco mais para si os cobertores e pronuncia “Boa noite!”. E uma voz ensonada e distante responde-lhe do outro lado da vida: “Boa noite, meu amor!”